segunda-feira, 23 de julho de 2018

Um Réu Diferente




Um Réu Diferente



Paulistano lá da zona leste, era doido esse Ramiro. Nem sei o porquê de ele ter vindo para Curitiba. Não era “inocente de tudo”, sabe? Ele já havia estado preso anteriormente. Morava numa quitinete no bairro do Portão. Trabalhava como digitador. Ganhava pouco, mas o suficiente para manter a moradia. Esse mulato magro de 30 anos namorava a Belinha, uma gatinha, viu?



Tudo estava indo muito bem até o dia em que o casal de namorados foi abordado pela provocação de um cara folgado:



— Ô Gostosa! Quanta saúde, hein? Cachorra! Você nunca mais me deu bola, hein? Ô Belinha, a gente já curtiu junto ... Nem fala com os vizinhos ... O que tá rolando ?



Ramiro percebeu que o sujeito tinha uma arma em suas costas, pois quando o mesmo começou a insultar, ele estava de perfil, possibilitando ser percebida a presença de um revólver em suas costas por trás da jaqueta. Era perceptível também que o indivíduo estava ligeiramente alterado por algum tipo de bebida alcoólica.



“Esse desgraçado é atrevido só porque tá armado! Ele vai pagar...” Pensou.



Belinha conhecia o “sem-futuro”. Era irmão de um “dono de boca de fumo” (traficante local). Ela tinha "ficado" com ele anos atrás.



Belinha começou a discutir:



— Seu idiota! Pau-no-cu! Só fiquei com você uma vez, e era quando eu tinha uns quinze anos! Babaca! Não quero nada com você, seu monte de merda!



Enquanto os dois discutiam, Ramiro deu um bote rápido na arma do babaca e em seguida deu um direto de direita no queixo do “engraçadinho”. O gaiato foi ao chão, perplexo, olhou para Ramiro empunhando o revólver de calibre 38 que tinha sido capturado. Após uma surra homérica, o fiel namorado de Belinha tirou as balas do tambor, jogou a arma para um lado da rua e a munição para outro. Depois daquele espetáculo de baixo nível, Belinha ficou desesperada e gritou:



— Ramiro! Esse cara que você bateu é irmão do Toninho, o traficante lá da esquina! A gangue deles vai te matar! A única alternativa era fugir. Belinha tinha implorado para que ele fosse embora. Ele não quis se humilhar e pedir dinheiro para ela. A namorada não sabia que o rapaz que ela amava estava sem nenhum.



A sensação era de corrosão por dentro. Era como se ele estivesse desertando de uma guerra, mas pela garota ele fazia tudo.



O rapaz foi parar na rodoviária de Curitiba com uma intenção: ir embora. Como ir para São Paulo sem um tostão sequer?



Na rodoviária ele foi para o setor interestadual. Viu uma oportunidade: uma lanchonete. Duas moças trabalhavam lá. Uma delas saiu enquanto a outra ficou no caixa e atendendo o público ao mesmo tempo.



“É agora!”, pensou Ramiro. Como não havia ninguém querendo comprar, ele logo pediu:



— Me vê aquele salgadinho...



— Esse aqui? – indagou a moça.



— Não. Aquele lá no fundo...



— Ah, tá...



Quando a moça foi para o fundo do estabelecimento pegar o requerido alimento, Ramiro abriu furtivamente a gaveta do dinheiro e pegou uma quantia equivalente a um salário mínimo na época.



A atendente trouxe a encomenda e Ramiro perguntou:



— Quanto é?



— Dois reais.



A compra foi paga com o dinheiro exato, não necessitando de troco, saiu sem levantar suspeita.



Ramiro estava na fila do guichê para comprar passagem rumo a São Paulo, quando foi abordado por dois policiais militares. O policial mais velho foi logo falando alto:



— Aí magrão! Acompanha “nóis” aí!



O Suspeito em questão não demonstrou nervosismo. Os policiais o revistaram e acharam o maço de dinheiro envolto num elástico. Na frente dos demais freqüentadores da rodoviária, os policiais tentaram transparecer seriedade. Satisfeitos com a prisão, demonstraram cavalheirismo ao devolver o dinheiro para a moça da lanchonete.



Se forem seguidos os padrões da lei, um condutor de prisão não pode devolver o dinheiro ou objeto à vítima imediatamente, pois é a prova do processo. Esse tipo de gentileza sempre denota erro na função policial. Sob este ponto de vista Ramiro percebeu algo nítido através desta ação: olhares e tons de voz mostraram que um dos policiais estava paquerando a funcionária da lanchonete. O PM paquerador falou em tom orgulhoso e exibido na frente das funcionárias e espectadores:



— É magrão... A mulher da limpeza viu você “ganhando” a grana! Acompanha “nóis” aí. Você tá preso.



Os PMs levaram o recém-preso para a sala da base da Polícia Militar no segundo andar da Rodoviária. Ao fechar a porta da sala, os policiais começaram a espancar o preso. Este, com as mãos algemadas para trás, conseguiu acertar um chute no rádio de comunicação da polícia. O rádio caiu no chão espatifado em vários pedaços. O policial mais velho esbravejou:



— Desgraçado! Ladrãozinho filho da puta!



Os dois policiais continuaram a espancar o cativo, desta vez com mais raiva. O réu Ramiro foi conduzido ao Distrito Policial situado mais próximo do local da ocorrência, como está previsto no Código Penal Brasileiro. Lá o escrivão perguntou nome, endereço etc. Ramiro negou-se a responder as perguntas. Quando os policiais da delegacia insistiram, ele limitou-se a dizer:



— Vocês já têm meus documentos. Não vou responder nem assinar nada.



O Escrivão, furioso, gritou:



— O quê?! Você não vai assinar a nota de culpa?!



Um policial desferiu um tapa no pescoço dele. Ramiro, num ato de rebeldia, avançou na direção do escrivão e quebrou o computador e a impressora. Após uma baita surra o réu foi conduzido ao cárcere daquela delegacia.



Os policiais jogaram o corpo quase desfalecido de Ramiro junto aos outros presos. Um dos policiais, para produzir intriga, gritou:



— Esse cara aí é estuprador, cagüeta (delator), vocês não vão deixar barato, vão?



Quando o policial fechou a grade, um dos presos perguntou:



— E daí maluco?! Qual é a sua? Pelo jeito você deve, né?



Ramiro respondeu calmo e seguro de si:



— Olha, se vocês quiserem me bater, tudo bem, mas vocês preferem acreditar na polícia ou no ladrão? Por acaso eu trouxe alguém preso comigo? Mano, acabei de quebrar o computador do escrivão, apanhei feito "gente grande"!



Um preso mais velho comentou com sabedoria:



— Olha, o maluco tá certo. A gente não tem que abraçar idéia de verme, tá ligado? Na minha vida já vi muito inocente apanhar porque a polícia “botou pilha”.



Os presos não espancaram Ramiro. Perceberam que era mais uma vítima da covardia do Estado coator. Vinte e poucas horas mais tarde, o recém presidiário foi conduzido ao centro de triagem. Esse órgão tem por finalidade distribuir presos para presídios do departamento penitenciário do estado.





II





Os pensamentos de Ramiro dentro do camburão, como são conhecidas as viaturas ultra desconfortáveis destinadas ao transporte de presos no Brasil, serviu como fuga para o sofrimento: “Ah, Belinha! minha deusa inspiradora de bons pensamentos, meu abrigo contra qualquer tormenta! Te amo para sempre, meu amor!” Dentro do camburão ele pensava na namorada como se fosse um navio que há muito partiu. Belinha era o único remédio contra inúmeras violências. A doçura da lembrança do passado era intercalada com um sentimento de culpa: “Eu estraguei tudo! Nunca mais vou poder ver minha princesa! Se voltar lá, ou vou matar ou serei morto! Acabou nosso namoro!”



Ao desembarcar no centro de triagem, um agente penitenciário ordenou que o preso tirasse toda a roupa para revistá-lo. Ramiro obedeceu calado. O agente penitenciário perguntou nome, endereço, profissão etc. Ramiro não respondeu nada. Ele foi conduzido até outra cela com outros presos. O agente penitenciário o advertiu:



— Se você continuar a não responder o que eu te pergunto, você vai “arranjar pra cabeça”, ladrão!



Dentro da cela ele ficava calado o tempo todo, era misterioso, intrigante... Os presos que tentavam conversar com ele obtinham apenas respostas curtas e evasivas.



Horas passaram e ele foi convocado a sair da cela e acompanhar o agente penitenciário até a sala de cadastro prisional.  Onde é feito o registro das impressões digitais, foto, altura etc. Nesse tipo de ambiente o ser humano cataloga o próprio ser humano. Não muito diferente do que é feito com um boi em uma fazenda.



Antes de entrar na sala de biometria e foto, Ramiro foi mais uma vez advertido por um agente:



— Se você não responder às perguntas, vai pro latão, ouviu?



O "latão" é a cela escura e geralmente solitária onde os réus sofrem castigo.



Havia mais dois presos na fila para fotografia e registro de digitais no scanner. Ramiro continuou quieto o tempo todo. Havia naquela sala apenas o fotógrafo catalogador e um carcereiro. Ao chegar a vez dele o fotógrafo ordenou:



— Encoste a cabeça na parede.



Na parede estavam pintados vários números para que ficasse registrada a altura do preso. O fotógrafo estava regulando o tripé fotográfico e, quando foi acoplar a câmera na base, Ramiro de súbito a arrancou da mão do fotógrafo. A câmera foi arremessada contra o chão, sendo quebrada em vários pedaços. Em seguida quebrou o computador e o scanner para digitais.



O chefe de segurança do centro de triagem ficou furioso com os agentes:



— Como podem vocês, seus incompetentes, deixarem este louco quebrar tudo?!



Os carcereiros deram uma surra nele e o conduziram à cela castigo. No dia seguinte era dia de visita dos presos que ali estavam por medida de segurança em relação aos outros presos (ex-policiais, delatores, advogados, empresários que receavam convívio com bandidos, estupradores etc.).



Ramiro aproveitou a fragilidade da ocasião e entupiu o vaso sanitário com um pano de chão imundo, apertou a descarga e fez transbordar água por todo o centro de triagem, um ambiente de apenas um corredor (galeria), com vinte celas com uns cinco presos cada. Foi água por todo lado, provocando uma confusão generalizada.



O chefe de segurança foi categórico:



— Tirem este louco daqui! Mandem ele pra Casa de Custódia ou pra qualquer cadeia que tenha vaga! Vamos! Agora! Não vou tirar foto desse cara. Esse lixo é só um ladrãozinho de rodoviária.



No mesmo dia o réu Ramiro, após ser espancado mais uma vez, foi para a Casa de Custódia de Curitiba, um presídio de segurança máxima localizado no bairro da Cidade Industrial.





III





Um furgão ultra desconfortável levou o interno ao famigerado presídio. Após uns 40 minutos dentro dum cubículo apertadíssimo e escuro, enfim chegou ao destino. Ao desembarcar na Casa de Custódia de Curitiba, teve que tirar a roupa outra vez. Guardas lhe entregaram uniforme laranjado, junto com uma sacola com um kit contendo sabonete, toalha, camiseta, fronha, escova de dentes, barbeador, pasta de dentes, cobertor, lençol, travesseiro e colchão.



Um agente penitenciário perguntou:



— Qual é o seu nome e a data de nascimento?



— Tá tudo aí no prontuário. — respondeu Ramiro secamente.



— Que desgraçado! Ainda por cima não tem nenhuma foto no prontuário desse ladrão.



Passaram uns cinco minutos e um agente veio com uma câmera digital para catalogar o interno.



— Vamos, interno! Encoste as costas na parede. — Gritou o agente.



Ramiro esboçou obediência, mas não resistiu à fúria: desferiu um pontapé certeiro na maldita câmera, quebrando-a em mil pedaços. Logo depois, adivinhe, levou outra surra.



Após a reprimenda física, foi levado para uma galeria com estilo futurístico, onde não havia grades, e sim acrílico transparente de alto impacto e portas de aço. Era por volta de 2006, e não fazia muitos anos que aquele presídio tinha sido inaugurado.



O réu, agora chamado de interno, ficou impressionado. Nem parecia terceiro mundo. Todos os presos estavam com uniforme laranja, e os próprios internos fechavam as portas das celas quando solicitados por alto-falante. A arquitetura do presídio era estilo norte-americano, só que na cela que originalmente era pra dois, a arquitetura tupiniquim “espremeu” fazendo caber cinco detentos. Na cela havia uma pia de aço inox emendada com um vaso sanitário também do mesmo material. O espaço era apertado: 2 metros e meio de comprimento por dois e meio de largura. No fundo os presos tinham a visão de duas janelas estreitas de acrílico de alto impacto e, acima, próxima ao teto, uma pequena abertura para ventilação. A porta da cela abria com comando eletrônico a partir da sala de controle de segurança. Esta sala era revestida de acrílico de alto impacto onde um agente abria as portas de todas as celas das três galerias do presídio, com 36 celas cada.



A porta era de aço com uma pequena janelinha de acrílico com uma abertura abaixo para que os alimentos e correspondências fossem entregues. A sala de controle só não conseguia fechar a porta. Os presos tinham o dever de fechar a porta quando solicitados. A cela, quando estava fechada, não poderia em hipótese alguma ser aberta sem que isso fosse percebido pelo painel eletrônico da sala de controle. Havia câmeras de vídeo de segurança por todo os lados. No passado só havia uma falha de segurança: a ausência de muro. Mas após uma fuga bem sucedida promovida em 2005, foi construído um muro muito alto com guardas “armados até os dentes”. A fuga ocorreu por causa de um grupo de criminosos destemidos que cortaram os alambrados em volta. Os bandidos arrebatadores trocaram tiros com os guardas e quebraram algumas paredes de celas com marretadas... Mas isso é outro fato. O que importa é que depois do muro e da colocação de cabos de aço suspensos, para impedir aterrissagem de helicópteros, a Casa de Custódia tornou-se uma fortaleza anti-fuga. A CCC, como era conhecida, também era à prova de rebelião, por causa do sistema de abertura de portas.



Ramiro ficou sozinho numa cela com quatro camas de concreto. A porta ficou aberta depois que ele entrou. No alto falante o guarda falou:



O réu, agora chamado de interno, ficou impressionado. Nem parecia terceiro mundo. Todos os presos estavam com uniforme laranja, e os próprios internos fechavam as portas das celas quando solicitados por alto-falante. A arquitetura do presídio era estilo norte-americano, só que no lugar que originalmente era pra dois, a arquitetura tupiniquim “espremeu” fazendo caber cinco detentos. Na cela havia uma pia de aço inox emendada com um vaso sanitário também do mesmo material. O espaço era apertado: 2 metros e pouco de comprimento por dois de largura. No fundo os presos tinham a visão de duas janelas estreitas de acrílico de alto impacto e, acima, próxima ao teto, uma pequena abertura para ventilação. A porta da cela abria com comando eletrônico a partir da sala de controle de segurança. Esta sala era revestida de acrílico de alto impacto onde um agente abria as portas de todas as celas das três galerias do presídio, com 36 celas cada.



A porta era de aço com uma pequena janelinha de acrílico com uma abertura abaixo para que os alimentos e correspondências fossem entregues. A sala de controle só não conseguia fechar a porta. Os presos tinham o dever de fechar a porta quando solicitados. A cela, quando estava fechada, não poderia em hipótese alguma ser aberta sem que isso fosse percebido pelo painel eletrônico da sala de controle. Havia câmeras de vídeo de segurança por todo os lados. No passado só havia uma falha de segurança: a ausência de muro. Mas após uma fuga bem sucedida promovida em 2005, foi construído um muro muito alto com guardas “armados até os dentes”. A fuga ocorreu por causa de um grupo de criminosos destemidos que cortaram os alambrados em volta. Os bandidos arrebatadores trocaram tiros com os guardas e quebraram algumas paredes de celas com marretadas... Mas isso é outro fato. O que importa é que depois do muro e da colocação de cabos de aço suspensos, para impedir aterrissagem de helicópteros, a Casa de Custódia tornou-se uma fortaleza anti-fuga. A CCC, como era conhecida, também era à prova de rebelião, por causa do sistema de abertura de portas.



Ramiro ficou sozinho numa cela com quatro camas de concreto. A porta ficou aberta depois que ele entrou. No alto falante o guarda falou:



— Atenção interno da cela 206, favor fechar a porta!



Depois ouvia-se uma campainha com som de aeroporto: “Ding-dong”.



— Atenção interno da cela 206, feche a porta agora!



Um preso que trabalhava na faxina gritou:



— Ô mano! Aqui a gente é obrigado a fechar a porta, faz favor, coopere!



— Se eles quiserem me dar outra surra, é tudo com eles! — respondeu Ramiro.



– Mas irmão, o sistema na “CCC” é assim, todos os presos tem que fechar a porta, por que é que você tem que ser diferente? – retrucou o preso da faxina.



— Irmão, não leve a mal, mas eu não sou carcereiro, sou preso! Eles é que fechem, se eles quiserem me botar no castigo, “demorou”!



Todos os presos da faxina tiveram que se recolher para o agente penitenciário entrar e fechar a porta da cela do Ramiro.



O novo interno era um estranho no ninho, não cedia às pressões de maneira alguma. Permanecia calado, sozinho, só saía para tomar banho de chuveiro. Os chuveiros ficavam fora da cela. Não tinham torneira. A ducha era controlada pela torre de controle. O banho durava três minutos apenas. Era água fria.



IV



Uma semana passou, e os guardas juntamente com os presos da faxina se viram em apuros. Toda vez que o interno Ramiro ia para o chuveiro, todos os demais tinham que se recolher aos seus respectivos cubículos para obedecerem à regra de segurança. Depois, a porta de segurança abaixo da sala de controle abria para os agentes entrarem e fecharem a porta do preso rebelde.



Lino, um réu preso por tráfico de drogas, morava com dois doentes mentais numa cela. Lino era muito paciente e calmo, e tinha fama de apaziguador. Agentes junto com os presos da faxina perguntaram se ele topava morar com o "louco". Lino respondeu de imediato:



— “Demorou”! Pode mandar esse maluco aqui que ele será bem-vindo.



Ramiro tinha se recusado a fazer a barba. Na CCC todos eram obrigados. Lino milagrosamente conseguiu convencê-lo a barbear-se.



Lino era o único ser que conseguia manter diálogo com o rebelde. Lino sempre teve muita preocupação e apreço pelos doentes mentais. Defendia todos, tratando-os como se fossem irmãos e filhos. O réu rebelde lia livros o dia inteiro, devorava tudo que tinha letras. Depois de dias, Lino conversava mais ou menos meia hora à noite com Ramiro. Tornaram-se grandes amigos. Um dia Lino perguntou:



— E sua mãe lá em São Paulo? Você não quer mandar uma carta pra ela? Eu tenho selo, papel e envelope. E a Belinha, sua namorada? Não vai escrever pra ela?



— Elas não sabem que estou preso. Não quero que saibam. Belinha não sabe o telefone da minha família. Quando eu sair, se um dia eu sair, vou procurar minha mãe e dar um abraço nela, e dizer que eu tava na Amazônia...



Ramiro era irredutível na questão do contato com os parentes. Não queria que soubessem de sua situação degradante. Era perceptível que ele amava sua mãe, mas não queria dividir o sofrimento com ela.



V



Três meses se passaram e finalmente chegou o dia de Ramiro ir ao fórum: ele teria audiência com o juiz na vara criminal. Lino aconselhou:



— Olha lá, Ramiro, juízo, hein? Vai lá, responde às perguntas do juiz... A tua “bronca” é pequena, viu? É papo de liberdade, valeu?



Ramiro ficou em silêncio como de costume.



Minutos se passaram e os presos de uniforme laranjado ouviram no alto-falante:



— Ramiro dos Santos, Porta Principal.



A porta abriu, fazendo um ranger típico de som de motor elétrico e engrenagens de aço. Ramiro saiu caminhando devagar até a porta de segurança. Foi revistado, algemado e conduzido até o furgão desumano e desconfortável. Duas horas mais tarde estava na frente do fórum.



No fórum outra ilegalidade do Estado repressor: uma cela superlotada onde os presos não tinham onde sentar. Eram presos de diferentes penitenciárias que conversavam alto, comparando os infernos dos presídios. Ramiro encontrou um ex-colega de cadeia, quando tinha estado preso em Araraquara no estado de São Paulo por furto. Como de costume, conversou o mínimo.



Após mais de duas horas esperando em pé, foi algemado até a sala do juiz. O interrogado se manteve calado, sentado numa cadeira com rodinhas.



— Profissão? Data de nascimento?



Ramiro continuou calado. O juiz intuitivamente percebeu que não se tratava de um réu comum. Pensou e, após alguns segundos, disse:



— Escute, Sr. Ramiro dos Santos, vamos, desabafe...



— Fui torturado diversas vezes. Vossa Excelência deposita fé nas palavras de torturadores intitulados policiais... Não há “rés furtiva” (objeto ou dinheiro apreendido como prova num processo criminal), como pode o Poder Judiciário ter aceitado uma denúncia sem cabimento desse tipo? – falou Ramiro em tom de desespero.



— Um momento, Sr. Ramiro... Há sim “rés furtiva” o Sr. Furtou 355 reais da lanchonete na rodoviária de Curitiba. — retrucou o juiz.



— Onde está esse dinheiro?! Mostre-me! Se Vossa Excelência apóia torturadores mentirosos, Vossa Excelência é sim co-autor de déspotas monstruosos que cometem abusos de autoridade!



O juiz ficou vermelho de raiva e ao mesmo tempo espantado com um preso falando português correto, algo raro no universo brasileiro. O magistrado respirou fundo, olhou para o teto e disse:



— Prossiga, Sr. Ramiro.



— Alguém ficou sem dinheiro? Alguém sofreu prejuízo? A única pessoa que saiu perdendo nessa história toda fui eu! Sofri tortura, humilhação! Recuso-me a assinar qualquer papel. Já se passaram meses e continuo a não assinar nada! Tenho nojo de tudo que vem do governo! Nojo!



O juiz a essa altura saiu do sério. Ordenou à sua escrivã:



— Dona Clotilde, por favor, digite aí uma liberdade provisória para o Sr. Ramiro. Chega de choradeira!



Enquanto a funcionária digitava, o juiz prosseguiu:



— É, Sr. Ramiro... O Senhor disse que não assinava nenhum papel... E a sua liberdade? O seu alvará de soltura? O Senhor vai assinar?



— Não. Não assino nada! — disse o réu de maneira categórica.



O juiz ficou abismado e atônito:



— Ô rapaz! É a sua liberdade! Basta assinar que você vai embora! Você quer voltar para a prisão?



Ramiro continuou inflexível:



— Eu não assinarei nenhum papel.



O juiz perdeu a postura e o decoro jurídico:



— Ah, então você vai voltar pra cadeia! Você é um louco! Tirem esse idiota daqui! Levem ele pra Casa de Custódia! Lá é o lugar dele! Que apodreça na prisão!



O réu e os policiais sairam da sala. O juiz botou a mão no queixo, fez uma careta de desaprovação e comentou:



— Dona Clotilde, em mais de vinte anos de magistratura nunca vi um cara jogar a liberdade fora desse jeito! Mas calma... Esse carinha ainda vai assinar o papel... Ninguém é tão doido desse jeito... Ah, a Senhora, vai ver, Dona Clotilde, A Senhora vai ver...



Quando Ramiro chegou na “CCC” Lino ficou horrorisado com a notícia:



— Meu, você jogou a liberdade fora!!! Ô meu, você não tem juízo, Ramiro?!!



Entre os presos e os agentes penitenciários, não se falava outra coisa. Estavam todos incrédulos com a loucura dele.



Três semanas depois, o juiz expediu o alvará de soltura. O réu deveria assinar o documento para sair da prisão. Os agentes se dirigiram ao Ramiro com surpreendente educação:



— Olha Ramiro... É a sua liberdade. Você já causou muita confusão. É só assinar!



Lino gritou:



— Vai lá, Ramiro! Mano, assine, é a sua liberdade!! Assine! Viva!!



Ramiro pegou a caneta, esboçou um movimento de quem iria assinar e subitamente rasgou o alvará de soltura!



— Eu não assino nada ! — disse secamente.



Todos ficaram boquiabertos. O réu preso tinha rasgado sua liberdade. Lino ficou inconformado, olhou para o teto e gritou:



— Oh meu Deus! Por que é que o Senhor não manda um documento desses pra eu assinar?! Ramiro: você é doido! Depois dessa eu preciso tomar um calmante.



Algumas semanas passaram e foi ouvida a seguinte frase no alto-falante:



— Ramiro dos Santos, porta principal!



Lino deu um tapinha no ombro de Ramiro e falou:



— Mano, eu acho que “cantou” o fórum... Juízo, hein?



O juiz titular da Vara Criminal chamou o réu Ramiro dos Santos para algo meramente lúdico: dois procuradores e um desembargador queriam conhecer “o maluco que rasgou o alvará de soltura”.



O juiz, após conversar com Ramiro, finalizou:



— O processo foi arquivado por falta de materialidade, ou seja, por ausência de indícios probatórios consistentes. O Senhor está livre. Não se preocupe, não precisa assinar nada. A vara criminal irá conceder uma exceção e o Senhor receberá uma passagem de ida para São Paulo. Aqui está. Juízo, hein?



Ramiro mal podia acreditar que tinha em suas mãos uma passagem para sua cidade. Voltou para a Casa de Custódia para pegar os pertences pessoais. Os agentes não permitiram que ele se despedisse dos amigos. Foi de carona numa viatura policial para a rodoviária e, quando o ônibus partiu, escorreu-lhe uma lágrima ao lembrar-se de Belinha. Nunca mais ninguém teve notícias dele. E sabe o Lino? Ele é irmão do escritor desse conto. Todos os meses o visitava naquele presídio medonho. Por isso fiquei sabendo desse fato. Conheci Belinha, e ela me pediu para tentar localizar Ramiro, mas fui frustrado no intento. Mudei os nomes e alguns acontecimentos por respeito à memória das pessoas envolvidas.



FIM

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