quarta-feira, 4 de julho de 2018

O Colecionador de Orelhas

O Colecionador de Orelhas
(Sérgio Portugal)

Em 1799 Joaquim Aguiar morreu na ilha Terceira, Açores, território de Portugal. Deixou para os dois filhos alguma terra onde criava gado e plantava uvas.

Pedro, o filho mais velho, sonhava em viajar para o Brasil.  Pedro Aguiar tinha 25 anos e seu irmão apenas nove. Os dois perderam a mãe por morte súbita um ano antes. Sem mãe nem pai fazia pouco sentido permanecerem na ilha Terceira.  A terra herdada foi vendida e foram os dois irmãos para a região de São João del-Rei, Minas Gerais no Brasil.

Pedro era como um pai para Alexandre.  Como não havia escola, Pedro ensinou seu irmão mais novo a ler e fazer contas. Pedro comprou uma fazenda com escravos e engenho de açúcar.   Rapidamente o irmão mais velho dos Aguiar fez a fazenda prosperar.  O patrimônio deles dobrou de tamanho quando Pedro casou com Maria Inês, uma viúva.

A fazenda ao lado pertencia aos sete irmãos Gouveia. Jaime, o mais velho, dizia que uma área conhecida como Morro Branco pertencia à sua família.  Pedro contestava, pois no contrato de compra da fazenda estava escrito que a área era dos Aguiar. O clima era tenso entre as duas famílias.

Anos passaram. Alexandre era um rapaz de 19 anos. Ele tinha uma amante. A bela Nhá Bia, uma mulata filha de Jonas, um negro alforriado. Jonas, para o escândalo da região, havia sido amante de uma portuguesa, e esta morrera ao dar à luz a menina Nhá Bia. Jonas era um pequeno agricultor com uma oficina de ferreiro.

Alexandre gostava de caçar e frequentar a casa de Jonas e Nhá Bia. Pedro frequentemente ficava furioso com as ausências de Alexandre. O mais novo dos Aguiar odiava Davi, o capataz da fazenda. Alexandre queria o cargo de Davi, mas Pedro o considerava imaturo e irresponsável.  Alexandre havia voltado de uma caçada acompanhada de uma noite de amor despudorado com Nhá Bia.  O rapaz levou um susto ao ver Jaime Gouveia visitar a sede da fazenda dos Aguiar.  Jaime foi enfático:
      — Olha Pedro, quero resolver essa questão do Morro Branco … Lhe dou essa quantia (mostrando um saco de pano) e você tira o seu gado da área do morro …

Pedro Aguiar interrompeu com ódio no tom de voz.

      — A área do Morro Branco sempre foi da família Aguiar e não está à venda.

     Jaime Gouveia olhou para Alexandre e para Pedro com ódio:
      — Vocês vão se arrepender !  Vocês estão ocupando uma área que pertence aos Gouveia ! Estou oferecendo dinheiro para pôr fim na questão !

     Jaime montou no cavalo e foi embora.  Alexandre perguntou ao irmão:
      — Por que você não aceitou o dinheiro ?  Era só vender- der a área do Morro Branco …
  — O dinheiro que ele me ofereceu não dá nem para comprar metade de uma área do tamanho do Morro Branco.  E outra coisa: eu comprei a fazenda de um homem honrado que descreveu com detalhes no contrato de venda que a área do Morro Branco é nossa ! Esses irmãos Gouveia estão acostumados a roubar terra !

Pedro olhou para um pote de barro que pertenceu ao avô na saudosa ilha Terceira e falou com tristeza .
      — Alexandre … Por que você fica tantos dias fora ? Essas caçadas … Eu não ligo se você namora a Nhá Bia, mas me importo sim em ter que tocar a fazenda sozinho.  Você tem que estar do meu lado e não longe !

     Alexandre respondeu com voz embargada.
      — Sabe, Pedro … Eu quero estar aqui, mas sem esse Davi.  Alguma coisa me diz que ele não é confiável.  Por que não posso ficar no lugar dele ?
      — É simples.  Você não sabe ser duro com os escravos. Davi é rigoroso com a negrada e é por isso que temos lucro.  Você,  Alexandre,  tem que aprender a ser duro.

Maria Inês interveio:
      — Parem com a discussão !  Vamos tomar um café !  Acabou de sair do forno aquele bolo de milho que vocês gostam.

Antes dos três comerem, Pedro fez uma oração.  Maria Inês e Pedro eram como se fossem pai e mãe de Alexandre. A briga com os Gouveia era o prelúdio de uma guerra vindoura.

O coração de Alexandre ficou apertado.  Pedro viu lágrimas escorrerem dos olhos de seu irmão.  Maria Inês e Pedro abraçaram-no.

Pedro pediu para Alexandre levar dois cavalos até Jonas para este trocar as ferraduras. Como a casinha de Jonas e Nhá Bia era longe, Alexandre aproveitou para dormir na casa de sua amada. A liberdade que Alexandre tinha com Nhá Bia jamais seria possível com uma moça branca honesta.

Jonas tinha segundas intenções. Queria que sua filha engravidasse do rapaz rico, para assim garantir um futuro seguro para Nhá Bia.

No quarto Nhá Bia se pôs a chorar.
      — Por que você tá chorando, minha flor ? — Perguntou Alexandre.
      — Eu era uma moça virgem.  Agora não sou mais.  Um dia você vai casar com uma moça branca de família rica e …
      — Pare com isso, Nhá Bia ! O Pedro aprova nosso namoro, você sabe disso ! Vou casar com você um dia. Eu juro. Eu te amo, minha flor !

Alexandre consolou Nhá Bia com beijos e abraços. Naturalmente Nhá Bia tinha razão em sua insegurança.  Mas o ato de se entregar ao mais intenso amor era uma fuga de tudo.

Após uma noite de amor tórrido e inebriante, na manhã seguinte veio muita chuva.  A solução era esperar. No final da tarde o tempo melhorou e Alexandre rumou para sua casa.

À noite a carroça chegou na sede da fazenda.  Algo estava errado.  A iluminação da casa grande estava apagada. Alexandre deixou a carroça perto da senzala e foi a pé até a sede. Uma fogueira pequena estava acesa. Ao lado do fogo havia uma visão tétrica: Pedro estava com os braços amarrados no galho de uma figueira. Abaixo da cabeça toda pele do corpo de Pedro havia sido arrancada por faca.  Pedro ainda estava vivo. Em agonia profunda conseguiu falar as últimas palavras para seu irmão.
    — Alexandre ! Não quero velório !  Quero que você mate esse canalha do Davi ! Ele é um traidor ! Se vendeu para o Jaime !  Mate esses canalhas ! Por favor dê dinheiro para Maria Inês voltar para Portugal, por favor !  Os Gouveia só não mataram você porque você não estava aqui comigo !

      — Pedro ! Eu juro que vou matar todos os Gouveia !! Canalhas !! — exclamou Alexandre em prantos.

      — Cuidado, Alexandre ! Deus cuide de você e de Maria Inês !  Ah …

Após pronunciar as últimas palavras, Pedro morreu.  Alexandre ficou desesperado. Minutos passaram e o ódio substituiu o desespero.

Alexandre ouviu um barulho.  Davi estava segurando um lampião na mão.  Davi estava chamando alguém.  Alexandre chegou à conclusão que o capataz traidor estava chamando um dos Gouveia. Davi entrou na casa grande.  Alexandre tinha uma faca. Davi foi esfaqueado e morreu rapidamente.  Um menino negro filho da cozinheira apontou para fora da casa. O menino cochichou para Alexandre dizendo que havia mais dois irmãos Gouveia lá.

A casa grande continuou escura. Um dos irmãos entrou chamando por Davi.
      —  Davi ?
      — Estou aqui. — Falou Alexandre imitando a voz grave do capataz traidor.

O Gouveia foi atraído para a armadilha mortal. Alexandre deu várias facadas no rapaz. Antes de morrer ele gritou pelo outro irmão Gouveia que estava do lado de fora.  Alexandre teve uma idéia macabra: cortar a orelha do cadáver como item de coleção.  E assim foi feito.  O outro Gouveia entrou na casa à procura do irmão.  Este estava armado com um mosquete. Alexandre o golpeou na cabeça com um pedaço de pau. Em seguida o matou com facadas e cortou a segunda orelha para sua coleção.

Maria Inês estava escondida na despensa. Alexandre foi até a senzala e escolheu dois escravos para ajudarem na proteção da fazenda.
      — Tenho uma boa notícia para vocês dois: estão alforriados !  Me ajudem na guerra contra os Gouveia.  Acabei de matar o Davi.

Alexandre armou os dois agora ex-escravos com mosquetes. Após meia hora ouviu-se o som da carroça de Jaime. Alexandre atirou na direção do veículo,  mas errou o tiro. Alexandre gritou.
      — Estamos armados, cambada de filhos da puta!

Os Gouveia acharam melhor recuar, uma vez que estavam em território hostil. Jaime Gouveia soube naquele momento que dois de seus irmãos estavam mortos. A guerra estava declarada.

Alexandre levou Maria Inês até o escritório e deu a ela metade do ouro que Pedro tinha de reserva.  A viúva estava desesperada.  Alexandre falou com firmeza.
      — As últimas palavras de Pedro foram para matar os Gouveia e dar dinheiro para a senhora viajar para Portugal.  A senhora tem dinheiro suficiente para comprar uma boa quinta lá.  Minha vida de agora em diante será vingança.  Vou colecionar orelhas. Já tenho duas. São sete irmãos Gouveia.  Faltam cinco orelhas. Não vou sossegar enquanto não matar todos os Gouveia !

Jonas foi encarregado por Alexandre de comunicar às autoridades policiais o ocorrido. Naquele tempo o Brasil era um lugar sem lei — ainda mais se tratando da região de São João del-Rei.  A preocupação do governo era quase somente cobrar imposto sobre o ouro do garimpo. Diante das enormes milícias mantidas por fazendeiros, as autoridades policiais junto com o fórum eram meros órgãos registradores de história, uma vez que a impunidade imperava no Brasil e na região de São João del-Rei nas Minas Gerais.

O juiz mandou convocar Alexandre e os irmãos Gouveia a deporem no fórum.  Somente Alexandre foi depor. Os irmãos Gouveia não foram localizados pelo oficial de justiça. 

No depoimento Alexandre disse que havia encontrado o irmão morto e que matou os dois irmãos Gouveia e Davi em legítima defesa.  O juiz deu o caso como encerrado; como se na cena do crime tivesse havido apenas a participação de Alexandre, Davi, Pedro e os dois irmãos Gouveia que haviam morrido.

Alexandre deu um dinheiro para o padre realizar o enterro do irmão. Temendo emboscada, ele e Maria Inês não foram ao funeral.

Pedro era um homem muito bem conceituado na cidade. Os quatro cadáveres em frente ao fórum causaram revolta na população.  Foram poucos os que não se indignaram com os irmãos Gouveia.  No fundo o juiz deu carta branca para Alexandre vingar o irmão.  Naquela época dificilmente um juiz iria contra a população.

Alexandre pensou em Nhá Bia.  Ela não poderia ficar desprotegida. O rapaz pediu a Jonas que Nhá Bia fosse morar na Casa Grande.

      — Sr. Jonas … Creio ser importante que sua filha vá morar comigo lá na Casa Grande .
      — O que ? Você vai casar com minha filha ? Minha filha só sai de casa casando . — Respondeu Jonas contrariado.
      — Sr. Jonas … A questão não é casar ou não casar. Os Gouveia sabem que na prática Nhá Bia é minha mulher,  portanto minha família.  Se ela ficar na casa do Sr., eles vão matar ela. Me desculpe, Sr. Jonas, mas eu não posso deixar a minha mulher desprotegida.  Prometo que um dia irei casar com sua filha na igreja.  Mas agora é guerra. Pedro morreu. Maria Inês irá para Portugal.  A única família que eu tenho é Nhá Bia e o Sr. — Disse Alexandre com voz embargada e lágrimas escorrendo.

Diante de argumentos tão fortes, Jonas não teve como impedir que Nhá Bia fosse morar com Alexandre.  Era tudo que Jonas queria. Nhá Bia soube naquele momento que o rapaz de sobrenome Aguiar realmente amava ela.  A moça pegou uma muda de roupa e subiu no cabriolé com Alexandre.

Foram contratados três jagunços.  Alexandre propôs aos negros metade da fazenda caso eles ajudassem a matar dois irmãos Gouveia.  Os negros foram libertos com carta de alforria. Os ex-escravos estavam motivados a batalhar para conseguir metade da fazenda. 

Naquela época o sonho de todo escravo era um dia ser liberto pelo seu respectivo senhor. Eles não só foram libertos, como foram vingados em sua honra ao verem o capataz cruel morto pelo patrão.  E ainda por cima diante da possibilidade de adquirir a própria terra. Com a maestria instintiva de um general, Alexandre montou um exército de homens realmente motivados pela causa.

Apenas dez escravos entre homens e mulheres estavam trabalhando. O restante se dedicava a treinar tiro sob a orientação dos jagunços.

Bento Correia era o chefe da jagunçada. Pistoleiro experiente, Bento ensinava no dia a dia os segredos da pistolagem.

Alexandre teve um plano para atacar os Gouveia. 
      — Bento, depois de amanhã eles vão para a missa de sétimo dia dos desgraçados que morreram.
      — Patrão, eles vão escoltados com um exército de pistoleiros …
      — Bento, o dia da missa de sétimo dia é outra coisa. Tenho uma ideia para hoje à noite … Nós estamos vigiando as duas entradas que dão acesso à casa grande deles. Até agora só vejo trânsito de visitantes. Será que eles estão todos estes dias sem sair da fazenda ?

      — Talvez.
      — Pois eu digo que não.  O Jaime e o segundo mais velho … Como é mesmo o nome do infeliz ?
      — Isaías.
      — Ah sim … Isaías.  O Jaime e o Isaías gostam de ficar de madrugada nas tavernas com mulherada, baralho e cachaça.
      — Tá bom, mas qual é o plano, patrãozinho ?
      — Até você, Bento ? Já disse que não gosto de ser chamado de “patrãozinho” …
      — Tá certo, mas fale do plano então “Seu Alexandre”!
      — A gente poderia armar uma emboscada na curva da estrada que vai para a putaria … Eles com certeza fizeram uma trilha no meio do mato. A gente não sabe qual caminho eles estão usando, mas com certeza estão pegando carreiro no meio do mato a cavalo pra ir e vir passando despercebidos.
      — Patrão, você tá pensando que nem pistoleiro, sô ! É isso aí Seu Alexandre.  A gente espera eles na saída.  Eles tão aproveitando a lua cheia pra passar de noite. 
   
Na noite seguinte Bento, Alexandre e meia dúzia de ex-escravos foram até a estrada que dava no cabaré da Lurdinha, o maior meretrício da região.  Naquela noite uma cantora francesa iria se apresentar com músicos.  Imperdível para quem gosta de boemia.

Alexandre e seu grupo viu Jaime, Isaías e mais dois capangas irem na direção do cabaré.  Foi uma longa espera.  O grupo de Alexandre esperou mais de cinco horas para o grupo de Jaime Gouveia voltar.

Alexandre estava com a mira em Jaime e Bento em Isaías.  Bento acertou Isaías e este caiu do cavalo. A arma de Alexandre falhou. Jaime saiu em disparada. Os africanos acertaram os dois capangas que acompanhavam os Gouveia.

Os três homens atingidos estavam agonizando.  Bento terminou de matar os dois capangas com facadas.  Alexandre fez o mesmo com Isaías.

      —  Pelo amor de Deus ! Piedade em nome de Deus ! Não me mate ! — Gritou Isaías.
    — Vá pro inferno, canalha ! — vociferou Alexandre.

Os cavalos e as moedas dos mortos ficaram com os ex-escravos.

Bento olhou torto para Alexandre e perguntou por quê ele não havia matado Jaime.
      — A arma falhou.  Veja ! Esse filho da puta tem sorte!

Alexandre cortou a terceira orelha para sua coleção.
Ao amanhecer Alexandre reuniu os africanos para uma reunião.  Um negrinho de uns dezoito anos foi flagrado voltando da fazenda dos Gouveia.
      —  O que você foi fazer lá ? Posso saber ?
      — Patrãozinho, eu fui visitar meu irmão, não sabe ? Ele tá trabalhando na plantação de cana do engenho dos Gouveia …
      — Quem lhe deu permissão para ir lá ?
      — O senhor, seu patrãozinho, o senhor disse que eu era livre …
      — Qualquer homem que faz compromisso é escravo da própria palavra, negrinho ! Você é um traidor ! Aqui não tem lugar para Judas informante ! Lhe dei a liberdade com chance de você conseguir um pedaço de terra ! Você não é homem.  Você é um safado !

Alexandre matou o rapaz sumariamente com um tiro de mosquete na cabeça. O patrão deixou claro à todos que não admitia traição.

  — Gente ! Hoje nós vamos pôr fogo na casa grande deles. Hoje à tarde é dia da missa de sétimo dia dos dois desgraçados que morreram no dia em que Pedro foi pendurado.  Eles vão escoltados com um monte de jagunços.

Alexandre fez uma longa pausa. Todos sabiam que o confronto estava próximo.  O peso no estômago, lábios ligeiramente trêmulos e amargo na boca. Os efeitos da ansiedade e da adrenalina estavam no coração de todos.

  — O plano é matar a jagunçada por lá, libertar os escravos, roubar o gado e incendiar tudo por lá. Gente boa, só falta vocês matarem mais um dos irmãos Gouveia.  Sou um homem de palavra.  Quando matarem o próximo Gouveia, metade da fazenda será de vocês.  Vocês estão comigo ?
    — Sim senhor, Patrãozinho. — Responderam todos em coro.

De longe pôde ser observado três carruagens e cinco cavaleiros saindo junto para a missa.

Alexandre, Bento e trinta ex-escravos armados invadiram a fazenda dos Gouveia, mataram o capataz e três jagunços.  Em seguida libertaram trinta e cinco escravos, roubaram o gado e incendiaram a casa grande e a senzala.

O gado e os cavalos viraram propriedade dos ex-escravos.  Os escravos recém libertos foram contratados por Alexandre.  Ouro e açúcar do estoque dos Gouveia entrou no caixa para despesas da guerra. Mulheres libertas foram para a casa grande da fazenda Aguiar. Os homens se juntaram ao pequeno exército da vingança.

Depois do ataque Jaime e os irmãos estavam praticamente falidos. Um dia foram vistos dois rapazes com bateias garimpando na beira do rio. Os Gouveia ficaram observando de longe. Dois dias depois havia cinco rapazes e alguns dias após quinze. Jaime foi maquiavélico.
    — O rio passa em nossa terra. Então o ouro é nosso. Não vamos matar ninguém, apenas vamos cercar o garimpo e cobrar uma parte para nós.  Com o dinheiro do ouro vamos montar um exército de pistoleiros para acabar de uma vez por todas com a alegria do Alexandre Aguiar.

O rio estava carregado de ouro. Os garimpeiros não tinham outra opção senão dar uma parte para os Gouveia.  Jaime foi cauteloso e só permitiu quinze garimpeiros no rio. Havia um temor sobre uma possível revolta armada desses homens. 

Com o dinheiro do ouro os Gouveia reconstruíram a casa grande.  Jaime e os irmãos ficavam o dia inteiro na beira do rio. Tudo parecia tranquilo, quase rotineiro.

Um dia, Alexandre resolveu atacar com todas as forças na direção do rio do garimpo. Não foi um bom dia. Bento e oito ex-escravos morreram.  Do lado dos Gouveia apenas três jagunços foram baleados fatalmente.

Alexandre se arrependeu de ter feito um ataque frontal com cavaleiros. Havia os garimpeiros que estavam armados e naturalmente reagiram. Os homens do garimpo tiveram a chance de se esconder atrás das árvores e pedras. Um desastre.

Jonas deu sua opinião.
    — Vamos fazer uma emboscada.  Eles sempre vão escoltados para a cidade.
  — Então pegamos eles na cidade.  — Disse decididamente Alexandre.

E foi o que ocorreu. Era festa de São João. Alexandre, jagunços e ex-escravos se misturaram à multidão.  Um ex-escravo dos Gouveia reconheceu um dos Gouveia e chamou Alexandre.  O ex-escravo o matou com facadas. Rapidamente a quarta orelha foi cortada para aumentar a coleção.  Alexandre e os ex-escravos fugiram a galope para a fazenda. A jagunçada dos Gouveia era mais numerosa. Jaime e seus capangas foram a cavalo logo atrás.

Alexandre, jagunços e ex-escravos conseguiram chegar na fazenda a tempo de evitar a morte.

Jaime estava furioso. Decidiu atacar a fazenda de Alexandre Aguiar com todas as forças. Levou todos os jagunços, amigos chegados e garimpeiros ao ataque.

Jaime só não contou que os africanos estavam armados, treinados e em maior número. Foi um massacre. Do lado dos Gouveia morreram quatorze homens. Do lado dos Aguiar morreram três ex-escravos.

Houve um contra-ataque surpreendente. Os homens de Alexandre perseguiram a jagunçada dos Gouveia até a casa grande deles.

Jaime e seu séquito de cavaleiros fugiram em disparada até a casa grande deles. Jaime estava apavorado com o tamanho e da eficiência da milícia montada por Alexandre.  Os mosquetes disparavam um tiro de cada vez. Devido a isso os Gouveia conseguiram chegar sãos e salvos na fazenda. Foi improvisada de maneira muito precária uma resistência. Entre Jagunços e ex-escravos havia mais de cinquenta homens armados e treinados.

Os Gouveia decidiram fugir. Não seria mais possível continuar o confronto. Jaime chamou seu sobrinho para a fuga. O rapaz de uns dezesseis anos tentou montar no cavalo, mas foi baleado na perna.

Jaime e os dois irmãos fugiram a galope para a cidade. Alexandre tomou posse da terra dos Gouveia. O rapaz baleado na perna estava tremendo de medo. Alexandre ordenou que não matassem ele. O rapaz tentou levar na fuga uma sacola de couro. Havia cinco quilos de ouro em seu interior.

  — Não matem o coitado ! Ele não participou do assassinato de Pedro. Mas o ouro fica comigo — ordenou Alexandre.

Jonas levou Victor Gouveia, sobrinho de Jaime, até a fazenda de um médico. A bala foi extraída. Victor sobreviveu. Um homem que trabalhava para Jaime também foi rendido. Alexandre mandou esse peão entregar uma carta ao Jaime. Na carta ficou claro que Victor era refém e que em qualquer tentativa de ataque o rapaz morreria.

Olhando de maneira pensativa, Alexandre perguntou para Victor:
      — Me diga uma coisa rapazinho; sei que é embaraçoso perguntar isso, mas … Seu pai está vivo ou morto ?
    — Está morto, Patrãozinho.
    — Você sabe qual o motivo disso, não sabe
— Meu pai matou o seu irmão. Acho que é esse o motivo, não é ?
— É Victor … Não é fácil. Eles arrancaram toda a pele do corpo dele com faca. Pedro sofreu muito antes de morrer. Apesar de eu ter jurado para meu irmão matar todos os Gouveia, você está vivo. Victor: eu não tenho nada contra você. Mesmo assim, vou trancá-lo na senzala. Você é minha garantia para que não me ataquem.

Victor ficou cabisbaixo e seguiu mancando atrás de um jagunço até a senzala.

No dia seguinte, no rio do ouro, garimpeiros estavam preocupados. Queriam saber se o sistema seria o mesmo. Eles pagavam uma fração da produção do garimpo para os Gouveia. Alexandre foi conversar com eles.
    — Quanto vocês costumavam pagar aos Gouveia ?
    — Um oitavo, uma oitava parte. — Disse um dos garimpeiros.
      — Vai continuar a mesma coisa. — disse Alexandre.

O rapaz ficou por algum tempo pensando na vida. Maria Inês já estava há meses em Portugal, mas ele não tinha nenhuma notícia dela e de sua família. Nhá Bia era sua mulher, mas ele não era casado com ela. Era como se ela fosse a amante antes do casamento. Ele queria dar o sobrenome Aguiar para ela.  Alexandre olhou demoradamente para o rio e começou a falar bem devagar.
      — Vocês não querem comprar a área do rio ? Eu não gostaria de me desfazer dessa área, mas …
      — Um garimpeiro velho foi rápido na resposta. Nós podemos comprar, qual é o preço ?
      — Vinte quilos de ouro.
      — Vinte quilos é muito dinheiro. Ofereço quinze.
      — Por dezoito quilos eu posso conversar.
      — Fechado. Começamos a pagar amanhã.
      — Negócio fechado.

Alexandre tinha enfraquecido os Gouveia de uma vez por todas. Eles definitivamente perderam quaisquer chances de obter lucro com aquela terra. Estavam sem terra, sem garimpo e sem dinheiro. No dia seguinte foi entregue metade da fazenda Aguiar para os ex-escravos. A área foi dividida em sítios grandes. Mesmo assim metade dos ex-escravos continuou a trabalhar para o “Patrãozinho”.

Nhá Bia engravidou. O engenho havia recomeçado. A contragosto Alexandre comprou vinte escravos homens e dez mulheres para tocar o engenho. Naquele tempo não havia maneira de obter lucro com plantação de cana-de-açúcar sem escravos. Mesmo assim Alexandre não se sentia bem com aquilo. Em seu íntimo nunca concordou com a escravidão. A realidade daquela época era cruel.

Alexandre mandou Victor para Salvador estudar. Todo semestre ele teria que pagar um bom dinheiro para o colégio interno jesuíta. Na verdade ele não queria Victor perto. Havia um sentimento de remorso difícil de conviver. A mãe de Victor havia fugido durante a contenda. Subitamente o jovem rapaz ficou sem família.

Jaime e seus dois irmãos sobreviventes foram obrigados a viajar atrás de trabalho. O dinheiro havia acabado e a guerra foi vencida pela família Aguiar.

Nhá Bia deu à luz a um menino.  O casal Aguiar o batizou com o nome de Pedro Aguiar Sobrinho. Nhá Bia implorou para que Alexandre desistisse de matar Jaime e o resto dos irmãos Gouveia.  Alexandre era irredutível.  Enquanto não matasse os assassinos de seu irmão não estaria satisfeito.

 Alexandre deixou Jonas, um capataz e Nhá Bia tomando conta do engenho e da fazenda.  Ele foi atrás de Felipe Gouveia, irmão de Jaime.  Felipe ficou sabendo que Victor estava estudando no colégio interno jesuíta em Salvador.  De quando em quando Felipe visitava o sobrinho no colégio.

Um dia Alexandre esperou Felipe na saída do tal colégio. O Gouveia foi seguido à distância até um casebre onde morava.

À noite, na rua, Alexandre atacou Felipe com vinte facadas. Agora restavam dois Gouveia. Naturalmente a orelha foi cortada para a coleção.  Cinco orelhas !

Alexandre tinha planos de visitar Victor, mas não teve coragem de enfrentar o rapaz cara a cara.

O vingador voltou para a fazenda.  Os anos foram passando. Alexandre tentava conseguir informações sobre o paradeiro dos dois últimos Gouveia e nada. Um dia uma prostituta fofoqueira disse que o irmão de Jaime estava em São Paulo.

Não havia outra opção senão viajar até São Paulo e frequentar os cabarés da vida.  Levou meses até que o paradeiro do irmão de Jaime fosse localizado.
Maurício Gouveia era dono de um prostíbulo de baixo nível.  Não foi difícil armar uma emboscada.  Doze facadas foram suficientes para dar cabo à vida do infeliz.  Mais uma orelha foi cortada.  Seis orelhas !

De volta ao engenho uma surpresa: Victor havia se formado no colégio interno. Alexandre não conseguia abraça-lo. Era um bloqueio. Mesmo assim Victor o abraçou.

Nhá Bia havia dado a luz ao segundo bebê. Victor foi enviado a Salvador novamente para estudar medicina.  Todas as despesas pagas pela família Aguiar. 

Os anos passaram. Victor ganhou da família Aguiar um área de terra para fazer uma fazenda. Victor Gouveia havia se tornado um médico conceituado na região de São João del-Rei em Minas Gerais.

Alexandre viajou novamente.  Dessa vez para se infiltrar nos garimpos da vida.  Uma barba cobria seu rosto pela primeira vez.  Com o passar dos anos seu cabelo foi ficando cada vez mais grisalho.

Seu objetivo ao se infiltrar nos garimpos era um só: Jaime Gouveia.  Alexandre não tinha nenhuma pista, mas sabia que seu maior inimigo gostava de garimpo e putaria.

Em um dos retornos de suas viagens Alexandre ficou muito doente.  Victor foi chamado para atendê-lo.
      — Já matou meu tio Jaime? — perguntou Victor em tom irônico.
      — Por que essa pergunta? ! Você é o médico ! Se quiser me matar me mate !
      — Eu não sou como você. A vingança não norteia minha vida.  Sou médico. Salvar vidas é a minha missão.

Após três meses de repouso Alexandre sarou. Um dia Victor viu Alexandre montado no cavalo e disse:
      — É … Ainda bem que você não me matou ! Tá vendo só ? Agora você tá curado !
      — Victor … É difícil para mim falar isso … Mas muito obrigado por ser meu amigo, não sei como agradecer.
      — Acho que o destino quis assim, Alexandre. Não culpo você por nada. Faria tudo o que você fez em memória à covardia que fizeram com Pedro. Meu pai e meus tios nunca prestaram. Você fez muito mais por mim que qualquer um dos Gouveia.

Ao ouvir as palavras de Victor, Alexandre se afastou com o cavalo. Lágrimas escorriam de seus olhos. O Aguiar não queria que Victor o visse emocionado.

Alguns anos passaram.  Alexandre gastou um bom dinheiro para o padre casar ele com Nhá Bia.  A sociedade local nunca viu a união dele com Nhá Bia com bons olhos.  Como poderiam ter filhos sem casamento ? Era um absurdo para a época.

Dificuldades financeiras vieram e Victor ajudou Pedro Aguiar Sobrinho a estudar em Salvador. Alexandre foi trabalhar num garimpo na província do Mato Grosso.  Virou comprador de ouro.  Um dia, por acaso, ficou sabendo do paradeiro de seu inimigo maior.

Jaime Gouveia trabalhava num garimpo e estava passando uns dias em Cuiabá.  Numa taverna com prostitutas e baralho Alexandre e Jaime se encontra- ram.

Devido aos cabelos grisalhos, a idade e a barba; Jaime não reconheceu seu inimigo.  Aquele homem barbudo não era parecido com o sobrevivente dos Aguiar vinte e cinco anos atrás.

Os dois resolveram jogar baralho. Jaime olhou para Alexandre com um sorriso.
      — Como é seu nome ?
      — “Antônio”. Sou de “São Paulo”.
      — Prazer. Sou Jaime, sou de Minas Gerais.
      — O que vamos apostar ?
      — Antônio, tenho um pouco de ouro dentro desse caixinha de madeira.  E você ? Tem um pouco de ouro?
      — Nesse saco saco de couro tenho também um pouco de ouro.
      — Tá certo, Antônio. Antes do jogo vamos tomar um gole de cachaça. Veja: essa daqui é cachaça mineira. É ótima. Um brinde !
 
Os dois tomaram meio copo de cachaça e foram para o jogo. 

Alexandre perdeu de propósito. Jaime Gouveia ao receber o prêmio da aposta ficou tetricamente pasmo: ao abrir o embrulho de couro das mãos de Alexandre verificou que não era ouro, e sim seis orelhas !! Levou um susto.  Olhou para o lado com vontade de fugir. Tarde demais.  Uma facada certeira no coração pôs fim à sua vida.

Alexandre o golpeou com mais facadas e cortou a última orelha para sua coleção.  Saiu da taverna como se nada tivesse acontecido.  Para as Minas Gerais pôde finalmente em paz voltar.

Nota


O conto “O Colecionador de Orelhas” é parcialmente histórico. O que há de real no texto é somente o local e o método usado pelo vingador. O resto é ficção. Usei liberdade total na redação. Meu pai, Rubens Junqueira Portugal era natural de Minas Gerais. Ele me contou sobre o terrível “Sete Orelhas”. O início da tragédia ocorreu onde hoje é o município de São Bento Abade, MG.

Há uma estátua em homenagem ao personagem histórico. A figueira onde o irmão do Sete Orelhas foi brutalmente assassinado existe até hoje. Em meu conto todos os nomes e fatos secundários são fictícios. Portanto, o leitor ávido por leitura de ação encontrará algo inédito.

Abaixo segue trecho de matéria publicada pelo jornal O Estado de Minas em 28 de janeiro de 2012 pelo colunista Gustavo Werneck.

Num tempo em que Minas era capitania e a Justiça estava a léguas de distância dos arraiais – quando estava! –, o bárbaro assassinato de um fazendeiro desencadeou a morte igualmente sangrenta de sete irmãos. Amarrado a uma figueira, João Garcia Leal, de 43 anos, foi despelado vivo, sem a menor chance de defesa, depois da disputa com um vizinho pela demarcação de terras. Sedento de vingança e sem apoio das autoridades coloniais, o irmão da vítima, Januário Garcia Leal (1761 –1808), considerado um homem bom e trabalhador, jurou vingança e seguiu os criminosos território mineiro afora, eliminando um a um. Para finalizar o ato, cortava a orelha do homem “justiçado”, salgava e enfiava num cordão. Não demorou muito para ser conhecido como Sete Orelhas. A história, que completa 210 anos e já foi tema de inúmeras obras literárias, teria se passado onde é hoje uma propriedade particular em São Bento Abade, a 256 quilômetros de Belo Horizonte, no Sul do estado. O local é tombado pelo município e a saga do justiceiro está a caminho de ganhar registro como patrimônio imaterial.

Mais do que trazer à tona a violência nos rincões do Brasil colonial, terras sem lei e gente para fazê-la ser cumprida, a saga do personagem trata da ocupação de Minas no século 18. Os antepassados de Januário emigraram do Arquipélago dos Açores, pertencente a Portugal, e se instalaram primeiro na capitania e em São Paulo. Em seu livro Jurisdição dos capitães – A história de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, e seu bando, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, integrante também do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, conta que as raízes, formação étnica e costumes da maioria do povo das Gerais estão nos Açores.

“Ao açoriano cabe a primazia de ter sido o nosso colonizador, o nosso desbravador, foi aquele bravo que fixou as nossas fronteiras, matou e morreu pela preservação da nossa integridade territorial”, diz Marcos Paulo, destacando outra característica dos ilhéus que os distinguiam dos portugueses, mais preocupados com o brilho do ouro. “Os açorianos cultuavam tradições, reveladas nas festas do Espírito Santo, Divino e folia de reis. Tinham espírito festeiro e transmitiram isso aos descendentes, deixando como legado as rodas de fiar, os teares domésticos para se fazer colchas de lã, o carro de boi mineiro e os doces caseiros.

Mas toda essa alegria não foi suficiente para aplacar a ira de Januário, homem branco, possuidor de vários bens e pertencente a uma das famílias mais tradicionais do Sul de Minas, ao descobrir a morte do irmão – de acordo com os relatos históricos, ele teria visto, do alto de um morro, a trágica cena de João Garcia tendo a pele retirada, ainda vivo, pelos filhos do fazendeiro Francisco Silva. Abandonou a mulher e o filho, Higino Garcia Leal, e começou a sua caçada pelos sertões, que duraria seis anos.

Ocupante do posto de capitão de ordenança – organização da população civil de caráter militar, para defesa local em caso de ataque de inimigo –, Januário adotou como primeira providência apelar para as autoridades, em São João del-Rei, sede da comarca do Rio das Mortes. Sem sucesso, devido à inércia do Poder Judiciário colonial, decidiu fazer justiça com as próprias mãos, seguindo a Lei de Talião: “Morte aos matadores”. “Assim, chegou um tempo, em Minas, que se podia falar na existência de duas justiças: a do Estado português, lenta, burocrática e ineficaz; e a dos Garcia, célere, imperativa e implacável”, diz o autor do livro.


Olho por olho

A história do Sete Orelhas passou de geração em geração e, na infância em Andrelândia, no Sul de Minas, o futuro promotor de Justiça a escutou muitas vezes, contada pelos avós. Adulto, Marcos Paulo decidiu estudá-la a fundo, afinal ele também descende dos Garcia. “Pesquisei a genealogia em São João del-Rei e encontrei também documentos em Portugal e no Arquivo Público Mineiro, descobrindo que aquilo que parecia lenda era realidade.” Um exemplo: “Em 1803, uma moradora da Freguesia de Campo Belo, então subordinada à Vila de São Bento do Tamanduá, hoje Itapecerica (MG), fez representação ao governo português contra o Sete Orelhas. No documento, ela cita ‘uma fiada de orelhas’ usada pelo justiceiro”.

O promotor localizou em Lages (SC) o auto de corpo de delito e o inventário de Januário, nascido em Jacuí (MG). Depois de anos de caça aos assassinos, ele seguiu para a cidade catarinense, vivendo como comerciante sob proteção de parentes, já que a colônia açoriana era grande naquela região. Curiosamente, morreu com uma pancada na altura da orelha, depois que a madeira de um curral o acertou. “Não há dúvida de que Januário passou a infância ouvindo de seus pais as façanhas do parente Bartolomeu Bueno do Prado, que mandou ao governo de Minas, segundo alguns historiadores, 3,9 mil pares de orelhas de negros fugidos. Se isso foi verdade, teria influenciado, de alguma maneira, a formação de Januário”, diz Marcos Paulo.

O justiceiro não matou sozinho os sete irmãos, tendo a companhia do irmão Salvador Garcia Leal e do primo Mateus Luís Garcia. De início, o bando matou três dos algozes de João Garcia Leal, quando se preparavam para fugir. Os restantes estavam em localidades diferentes e o último se fazia de “santo” perto de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha. Sete Orelhas lhe deu a chance de viver: mandou que ele caminhasse 100 passos e avisou que atiraria; se não acertasse, poderia ir embora, do contrário… Não deu outra e, finalmente, o capitão cumpriu o prometido.

A coroa portuguesa não deu trégua e pôs no encalço do bando o temido Fernando Vasconcelos Parada e Souza, o mesmo encarregado de perseguir os inconfidentes. “Ele não conseguiu pegar Januário, mas Salvador foi preso. Já o primo Mateus conseguiu fugir”. O promotor traz a história para os dias atuais, lembrando que “se não tivermos um eficaz aparelho estatal de repressão à criminalidade, as pessoas que buscarem e não encontrarem justiça vão fazê-la com as próprias mãos”.





LINHA DO TEMPO



Século 18 –Início da formação, no Brasil, do clã dos Garcia, com a emigração dos antepassados de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, vindos do Arquipélago dos Açores
1802 –Em 21 de janeiro, Januário recebe a carta patente de capitão de ordenança, em Alfenas, antigo Arraial de São José e Nossa Senhora das Dores
1802 – O fazendeiro João Garcia Leal, irmão do capitão Januário, é cruelmente assassinado por sete irmãos, sendo despelado vivo, amarrado a uma figueira, em São Bento Abade, no Sul de Minas
1802 –Januário Garcia Leal jura vingança e, diante da inércia da Justiça colonial, parte em busca dos sete assassinos do irmão. Durante seis anos, o capitão parte em busca dos assassinos, matando-os um a um
1803 – Moradora da Freguesia de Campo Belo, então subordinada à Vila de São Bento do Tamanduá, hoje Itapecerica (MG), faz representação ao governo português contra o Sete Orelhas
1808 –Januário Garcia, então com 47 anos e vivendo como comerciante, morre em Lages (SC)
Década de 1820 – Grande parte dos Garcia Leal segue para as capitanias de Mato Grosso e Goiás, passando a povoá-las
1990 –Lei Orgânica de São Bento Abade (MG) determina o tombamento da Figueira do Tira-couro, onde morreu João Garcia
2004 –Em 12 de abril, Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de São Bento Abade tomba a Figueira do Tira-couro, com área de 1 mil metros quadrados, em propriedade particular

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