quinta-feira, 26 de julho de 2018

Um Dançarino Virtuoso


Um Dançarino Virtuoso
Escrito por Sérgio Portugal




Um Dançarino Virtuoso
                                                                                                                          
Sérgio Portugal


Diego tinha 18 anos. Sua origem era miserável.  Morava no sul do Brasil, no interior do Paraná.  Ele era afro descendente, magro com um metro e setenta de altura. Seu destino: San Fermín, uma cidadezinha paraguaia cheia de brasileiros imigrantes atraídos pela promessa de terra barata e vida farta.

Ao chegar na localidade, foi trabalhar no ferro velho de um amigo de sua família.  Seu Alfredo era um homem gordo de descendência alemã.  Um típico brasiguaio, como são chamados os brasileiros que moram lá.  Tanto Seu Alfredo como Diego eram do oeste do Paraná no Brasil.

Eram poucos os funcionários do ferro velho do Sr. Alfredo;  entre eles Tiaguinho, um brasileiro e Dolores, uma paraguaia solteirona de uns quarenta anos.

San Fermín era impulsionada economicamente por soja e gado. A terra era muito fértil e de um vermelho intenso.  A vida longe da terra brasileira era amarga no quesito saudade.

No pequeno povoado aparentemente havia apenas uma diversão: os bailes de cúmbia e guarânia dos fins de semana.

Um dia Diego ouviu uma música diferente, com ritmo animado e dançante. Ele perguntou a Dolores:
      — Que tipo de música é essa ?
     — Cúmbia ! Ah, minha juventude … Adoro cúmbia!  Cúmbia boa é com orquestra e cantores …
       — Como se dança essa música ?
    — Diego … Como você sabe, nós no Paraguai descansamos depois do almoço.  Nesse tempo eu posso ensinar as danças latinas e paraguaias …

Depois daquela conversa Dolores passou a ensinar dança ao colega brasileiro. Nos bailes de fim de semana uma bela muchacha se destacava no meio da multidão de dançarinos: a bela e encantadora Mercedes.

Mercedes dançava maravilhosamente bem. Já havia vencido concursos de dança em outras cidades. Além de ser exímia dançarina de salão, tinha carisma e charme arrebatadores. Mercedes era namorada de Ariel, filho do delegado de polícia. Ariel era muito arrogante, um tipo desprezível e insuportável.

O namoro dos dois impedia Diego de dançar com Mercedes.  Os bailes iam acontecendo e todos os frequentadores verificaram que Diego era um fenômeno.  Um autêntico pé-de-valsa para ninguém botar defeito.

Num fatídico baile de sábado, Diego viu Mercedes dar uma bofetada em Ariel. Aproveitando a briga dos dois, ao ver Ariel sair do salão, pediu que Mercedes lhe concedesse uma dança.

Tal ato causou surpresa geral. Todos pararam de dançar para ver tremendo escândalo.  Ambos dançavam tão bem que a orquestra executou uma salsa para ver até que ponto os dançarinos eram virtuosos. O par parecia deslizar sobre a pista.  Diego ousou lançar Mercedes para o alto fazendo mil piruetas. Os dois pareciam ter ensaiado durante meses.  

Ao fim da dança aplausos e pedidos de bis. Na arte da dança os dois artistas se encontraram. O sentimento de Mercedes era o mesmo quando uma bailarina clássica descobre o par ideal. Após cúmbia, guarânia, salsa, mambo e outros ritmos; a orquestra ficou boquiaberta diante dp fenômeno raríssimo.  Foi mágico e marcante para o resto de uma vida.

Diego havia experimentado os sentimentos de glória e êxtase.  Sentimentos estes interrompidos por seu colega de trabalho Tiaguinho que se aproximou aos gritos:
     — Diego !  O Ariel quer matar você, cara ! Ele "tá" lá fora armado com uma pistola ! "Vamo" embora, mano ! Os dois saíram pela porta dos fundos.  Diego pegou uma pedra grande da calçada.  Ao dobrar a esquina, o intrépido brasileiro se deparou a poucos metros de Ariel.  Diego não teve dúvidas: atirou a pedra na testa de seu rival.  Ariel caiu desmaiado na rua.

No ímpeto da adrenalina, Diego perfurou duas vezes o ventre de Ariel com seu canivete de bolso. Diego pegou a pistola de Ariel para afugentar os amigos de seu recém inimigo. A reação instintiva foi correr para o ferro velho.

Ao chegar no ferro velho pegou uma mochila e às pressas colocou umas roupas e documentos. O próximo estágio seria a fuga para o Brasil. Inútil a tentativa. A polícia o parou na rua. O delegado (no Paraguai chamado de comissário), pai de Ariel, gritou:
    — ¡Pare, brasileño negrito de mierda! Você quase matou meu filho, negro desgraçado !

Diego foi levado à delegacia onde levou uma surra inesquecível.  O delegado gritou com ódio:
    — Hoje descobri quem foi o autor das duas chacinas ocorridas no passado !  Foi você, brasileiro filho da puta ! Minha irmã é a juíza da cidade. Você tá ferrado !
Diego desabou em prantos e implorou ao delegado:

    — Eu não matei ninguém !  Sou trabalhador ! Pelo amor de Deus não cometa injustiça ! Errei, peço perdão !! Mas seu filho estava armado ! Era ele ou eu !!!
     — Cale a boca, brasileiro de merda !  Você será responsabilizado por duas chacinas ocorridas no passado.  Você nunca mais vai sair da cadeia !
   
Diego foi condenado a setenta e cinco anos de prisão.  Foi transferido para o presídio infernal “La Cárcel Regional de Ciudad del Este” na fronteira com Foz do Iguaçu, no Brasil.

No inferno da cadeia conheceu outro rapaz negro como ele. Nonato tinha a mesma idade e aparência.  Pareciam irmãos.  Os poucos brasileiros presos lá viviam na mesma cela, uma vez que sofriam preconceito de nacionalidade.

Nonato ensinou Diego a utilizar o tear manual e confeccionar redes de dormir para vender. Com o dinheiro do artesanato podiam comprar comida da rua, algo bem melhor que a terrível alimentação fornecida aos presos no Paraguai.  Nonato era ladrão.  Foi preso em flagrante cometendo furto numa loja.

Uma vez por mês, Alfredo, seu ex-patrão, vinha visitá-lo. Para entrar na prisão, Sr. Alfredo tinha de tirar sua roupa durante a revista.  Era muito humilhante. Sr. Alfredo não se importava: queria ver seu ex-funcionário, que era quase um filho adotivo. O ex-patrão sempre o motivava com otimismo e esperança. Em uma das visitas Diego desabafou por completo.

    — Me falaram que só vou sair daqui depois de trinta anos. Pra que viver ? Eu não matei ninguém ! E agora, Seu Alfredo ? — gritou Diego em prantos.

Seu Alfredo não deixava o pessimismo devorar a alma de seu amigo.
    
    — Escute uma coisa … Anos atrás eu estava com câncer.  O médico deu seis meses de vida.  Eu venci o câncer.  Estou falando de vinte anos atrás.  Tenha fé em Deus ! As coisas mudam. Antes de dormir e ao acordar peça dias melhores.  Tenha fé. Se afaste dos maus e procure fazer o bem.  Você ganhou um irmão aí dentro: o Nonato. Ele ensinou um ofício. Dias melhores virão, pense nisso.

Anos passaram.  Diego já havia se conformado com a pena. O que o deixava surpreso era o fato de Nonato ainda estar lá.  Afinal seu crime era apenas furto … “Daqui alguns dias Nonato será liberto.” Pensou.

Num certo domingo Nonato estava dormindo na cela enquanto Diego caminhava no pátio.

Um guarda novato anunciou o alvará de soltura para Nonato.

    — Atención de todos. Libertad para Nonato dos Santos. ¿Quién es Nonato dos Santos? (Atenção todo mundo ! Quem é Nonato dos Santos ?) — Perguntou o guarda.

    — Soy yo, señor. (Sou eu, senhor) — respondeu Diego bancando o impostor.
    — ¿Usted es Nonato dos Santos? (Você é o Nonato dos Santos ?)
    — Sí (Sim) — respondeu Diego disfarçando o nervosismo.
    — Arrume suas coisas. O juiz assinou sua liberdade anteontem.
    — Não quero levar nada para a rua, senhor.  Não tenho nenhum documento aqui.
    — Está bem. — disse o guarda com um sorriso abrindo a primeira porta.

Diego entrou num corredor em direção à saída do presídio. Seu coração estava batendo rápido. Sua respiração estava ofegante. “Tenho que me controlar” pensou.


Na segunda porta outro guarda perguntou ao jovem brasileiro nome da mãe e pai, local e data de nascimento.  Pela convivência e amizade Diego sabia os dados de Nonato de cor.

Ao chegar na terceira e última porta, um guarda desconfiado perguntou:
    — Qual seu signo ?  — perguntou o carcereiro com tom enérgico.

Naquele momento mortal Diego ficou numa dúvida terrível: não tinha certeza sobre o signo de seu amigo fraterno.  Nonato odiava falar em horóscopo.  Diego escolheu quase que aleatoriamente:
    — Libra, Senhor.

O guarda olhou para o documento e ficou calado por um tempo. Em seguida sorriu.
    — Nonato: vá com Deus. Juízo, hein ?

Diego mal podia acreditar. Estava livre após dois longos anos !

O jovem brasileiro andou algumas quadras e embarcou no ônibus urbano internacional da linha “Ciudad del Este - Foz do Iguaçu”Tudo parecia tranquilo até que o ônibus foi parado na aduana paraguaia antes de cruzar a fronteira para o Brasil na famosa Ponte da Amizade sobre o rio Paraná.

Policiais entraram no ônibus.  Pediram que todos os passageiros mostrassem os documentos. Diego mostrou a carteira de identidade de Nonato. Outro policial pediu que todos abrissem suas bagagens.  Para alívio do brasileirinho era apenas uma inspeção de rotina no combate ao tráfico de drogas.

O ônibus foi liberado.  Na primeira metade da ponte, as cores da mureta lateral são vermelho, branco e azul (as cores da bandeira do Paraguai); a segunda parte possui as cores verde e amarelo do Brasil.

Quando o ônibus chegou do lado verde-amarelo, Diego teve a certeza de que estava são e salvo em sua amada pátria ! A primeira imagem vista foi de meninos jogando bola descalços num num terreno baldio próximo à margem do rio.  Lágrimas escorriam incontroladamente. Naquele sublime momento Diego renasceu. As lágrimas fizeram um novo homem surgir em liberdade.  Paraguai nunca mais !  Ah … Nonato também foi liberto. Após uma tremenda surra. Durante o espancamento Nonato havia, em seu pensamento, perdoado o amigo impostor. Pensou: “Se fosse comigo faria o mesmo. “

Nota do escritor Sérgio Portugal: Essa é uma história verídica. Os nomes foram trocados. Naturalmente há um pouco de ficção no relato. Conheci pessoalmente Dieguinho (que na verdade possui outro nome). Ele era meu vizinho no tempo em que morava em Foz do Iguaçu, fronteira com o Paraguai. 




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