terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

O Contexto histórico da última entrevista de Hannah Arendt em 1973

 



]A última entrevista de Hannah Arendt concedida ao repórter documentarista Roger Herrera foi, em minha humilde opinião, a melhor entrevista da filósofa em questão. Tal evento ocorreu em 1973 em Nova York, cidade onde Hannah Arendt morava. A entrevista foi em inglês apesar de Hannah Arendt falar francês fluentemente. 

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Ficção Científica: Quando Um Inventor Genial Acerta Na Loteria



Para quem gosta de sci-fi, eis o livro !


Autor: Arimar Diego
Um garoto pobre da periferia de Manaus no Amazonas, ansiava por dias melhores quando ele ganha um prêmio da mega-sena de R$ 100 milhões de reais. Esse menino se transforma em um dos homens mais ricos do mundo com inventos que mudam para sempre toda a sociedade humana, em todos os níveis, criando assim uma nova sociedade a partir do caos e da guerra. Os principais inventos são; o gerador de energia infinita, o projeto Ômega que coloca a todos em uma rede chamada de Via-Net onde qualquer um pode baixar diretamente em sua mente todo o conhecimento que quiser, que vão de como ser um engenheiro nuclear até chefe de cozinha ou até mesmo dirigir um carro. Por último mais não menos importante os Nanos-Construtores que são robôs em escala manométrica que podem produzir qualquer coisa de uma casa, à um carro e até novos nanos-robôs, através de comandos mentais.
Para poder construir todas estas coisas o homem tinha que ter mais poder, teve que criar um novo estado, onde estaria a salvo do mundo. Seu estado tinha que ser diferente de todos os outros, tinha que ser um lugar onde teria poder absoluto. Nesse momento o garoto pobre que havia se tornado um inventor rico se torna um Rei. Em seu reino absolutistas a única coisa que importava era o conhecimento. E como este poderia ajudar a sociedade como um todo. Era uma nação de filósofos, cientistas, inventores e pesquisadores, uma sociedade inteiramente formada de doutores vindo de todo o mundo. Mais tanto poder e liberdade dada a estes cientistas despertam males que havíamos sido dominados a muito tempo. Mutações genéticas, demônios, inteligência artificial, a natureza da própria alma humana, os limites da religião e os mistérios do tempo, entre outros.
Ao final quando todas as invenções e os conhecimentos desse reino são liberados para o mundo inteiro a única coisa que faz com que a humanidade não se destrua por sua própria natureza mesquinha, gananciosa e preconceituosa e um inimigo comum a todos.
Esse é o livro O Reino: Uma Nova Utopia Social

Leia o Primeiro capítulo: https://sites.google.com/view/livrooreino/1%C2%AA-cap%C3%ADtulo-na-pobreza-o-rico-problema-da-maior-quest%C3%A3o

domingo, 29 de julho de 2018

Leia um Livro em 80 Minutos !

Leia um Livro em 80 minutos ! Áudio Livro Inédito !

O Gato Brasileiro (The Brazilian Cat) foi escrito por Arthur Conan Doyle em 1898. Foi traduzido pelo escritor Sergio Portugal em 2018.

Do mesmo escritor que criou o detetive Sherlock Holmes !

https://youtu.be/3P3SnL5X4HI

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Um Dançarino Virtuoso


Um Dançarino Virtuoso
Escrito por Sérgio Portugal




Um Dançarino Virtuoso
                                                                                                                          
Sérgio Portugal


Diego tinha 18 anos. Sua origem era miserável.  Morava no sul do Brasil, no interior do Paraná.  Ele era afro descendente, magro com um metro e setenta de altura. Seu destino: San Fermín, uma cidadezinha paraguaia cheia de brasileiros imigrantes atraídos pela promessa de terra barata e vida farta.

Ao chegar na localidade, foi trabalhar no ferro velho de um amigo de sua família.  Seu Alfredo era um homem gordo de descendência alemã.  Um típico brasiguaio, como são chamados os brasileiros que moram lá.  Tanto Seu Alfredo como Diego eram do oeste do Paraná no Brasil.

Eram poucos os funcionários do ferro velho do Sr. Alfredo;  entre eles Tiaguinho, um brasileiro e Dolores, uma paraguaia solteirona de uns quarenta anos.

San Fermín era impulsionada economicamente por soja e gado. A terra era muito fértil e de um vermelho intenso.  A vida longe da terra brasileira era amarga no quesito saudade.

No pequeno povoado aparentemente havia apenas uma diversão: os bailes de cúmbia e guarânia dos fins de semana.

Um dia Diego ouviu uma música diferente, com ritmo animado e dançante. Ele perguntou a Dolores:
      — Que tipo de música é essa ?
     — Cúmbia ! Ah, minha juventude … Adoro cúmbia!  Cúmbia boa é com orquestra e cantores …
       — Como se dança essa música ?
    — Diego … Como você sabe, nós no Paraguai descansamos depois do almoço.  Nesse tempo eu posso ensinar as danças latinas e paraguaias …

Depois daquela conversa Dolores passou a ensinar dança ao colega brasileiro. Nos bailes de fim de semana uma bela muchacha se destacava no meio da multidão de dançarinos: a bela e encantadora Mercedes.

Mercedes dançava maravilhosamente bem. Já havia vencido concursos de dança em outras cidades. Além de ser exímia dançarina de salão, tinha carisma e charme arrebatadores. Mercedes era namorada de Ariel, filho do delegado de polícia. Ariel era muito arrogante, um tipo desprezível e insuportável.

O namoro dos dois impedia Diego de dançar com Mercedes.  Os bailes iam acontecendo e todos os frequentadores verificaram que Diego era um fenômeno.  Um autêntico pé-de-valsa para ninguém botar defeito.

Num fatídico baile de sábado, Diego viu Mercedes dar uma bofetada em Ariel. Aproveitando a briga dos dois, ao ver Ariel sair do salão, pediu que Mercedes lhe concedesse uma dança.

Tal ato causou surpresa geral. Todos pararam de dançar para ver tremendo escândalo.  Ambos dançavam tão bem que a orquestra executou uma salsa para ver até que ponto os dançarinos eram virtuosos. O par parecia deslizar sobre a pista.  Diego ousou lançar Mercedes para o alto fazendo mil piruetas. Os dois pareciam ter ensaiado durante meses.  

Ao fim da dança aplausos e pedidos de bis. Na arte da dança os dois artistas se encontraram. O sentimento de Mercedes era o mesmo quando uma bailarina clássica descobre o par ideal. Após cúmbia, guarânia, salsa, mambo e outros ritmos; a orquestra ficou boquiaberta diante dp fenômeno raríssimo.  Foi mágico e marcante para o resto de uma vida.

Diego havia experimentado os sentimentos de glória e êxtase.  Sentimentos estes interrompidos por seu colega de trabalho Tiaguinho que se aproximou aos gritos:
     — Diego !  O Ariel quer matar você, cara ! Ele "tá" lá fora armado com uma pistola ! "Vamo" embora, mano ! Os dois saíram pela porta dos fundos.  Diego pegou uma pedra grande da calçada.  Ao dobrar a esquina, o intrépido brasileiro se deparou a poucos metros de Ariel.  Diego não teve dúvidas: atirou a pedra na testa de seu rival.  Ariel caiu desmaiado na rua.

No ímpeto da adrenalina, Diego perfurou duas vezes o ventre de Ariel com seu canivete de bolso. Diego pegou a pistola de Ariel para afugentar os amigos de seu recém inimigo. A reação instintiva foi correr para o ferro velho.

Ao chegar no ferro velho pegou uma mochila e às pressas colocou umas roupas e documentos. O próximo estágio seria a fuga para o Brasil. Inútil a tentativa. A polícia o parou na rua. O delegado (no Paraguai chamado de comissário), pai de Ariel, gritou:
    — ¡Pare, brasileño negrito de mierda! Você quase matou meu filho, negro desgraçado !

Diego foi levado à delegacia onde levou uma surra inesquecível.  O delegado gritou com ódio:
    — Hoje descobri quem foi o autor das duas chacinas ocorridas no passado !  Foi você, brasileiro filho da puta ! Minha irmã é a juíza da cidade. Você tá ferrado !
Diego desabou em prantos e implorou ao delegado:

    — Eu não matei ninguém !  Sou trabalhador ! Pelo amor de Deus não cometa injustiça ! Errei, peço perdão !! Mas seu filho estava armado ! Era ele ou eu !!!
     — Cale a boca, brasileiro de merda !  Você será responsabilizado por duas chacinas ocorridas no passado.  Você nunca mais vai sair da cadeia !
   
Diego foi condenado a setenta e cinco anos de prisão.  Foi transferido para o presídio infernal “La Cárcel Regional de Ciudad del Este” na fronteira com Foz do Iguaçu, no Brasil.

No inferno da cadeia conheceu outro rapaz negro como ele. Nonato tinha a mesma idade e aparência.  Pareciam irmãos.  Os poucos brasileiros presos lá viviam na mesma cela, uma vez que sofriam preconceito de nacionalidade.

Nonato ensinou Diego a utilizar o tear manual e confeccionar redes de dormir para vender. Com o dinheiro do artesanato podiam comprar comida da rua, algo bem melhor que a terrível alimentação fornecida aos presos no Paraguai.  Nonato era ladrão.  Foi preso em flagrante cometendo furto numa loja.

Uma vez por mês, Alfredo, seu ex-patrão, vinha visitá-lo. Para entrar na prisão, Sr. Alfredo tinha de tirar sua roupa durante a revista.  Era muito humilhante. Sr. Alfredo não se importava: queria ver seu ex-funcionário, que era quase um filho adotivo. O ex-patrão sempre o motivava com otimismo e esperança. Em uma das visitas Diego desabafou por completo.

    — Me falaram que só vou sair daqui depois de trinta anos. Pra que viver ? Eu não matei ninguém ! E agora, Seu Alfredo ? — gritou Diego em prantos.

Seu Alfredo não deixava o pessimismo devorar a alma de seu amigo.
    
    — Escute uma coisa … Anos atrás eu estava com câncer.  O médico deu seis meses de vida.  Eu venci o câncer.  Estou falando de vinte anos atrás.  Tenha fé em Deus ! As coisas mudam. Antes de dormir e ao acordar peça dias melhores.  Tenha fé. Se afaste dos maus e procure fazer o bem.  Você ganhou um irmão aí dentro: o Nonato. Ele ensinou um ofício. Dias melhores virão, pense nisso.

Anos passaram.  Diego já havia se conformado com a pena. O que o deixava surpreso era o fato de Nonato ainda estar lá.  Afinal seu crime era apenas furto … “Daqui alguns dias Nonato será liberto.” Pensou.

Num certo domingo Nonato estava dormindo na cela enquanto Diego caminhava no pátio.

Um guarda novato anunciou o alvará de soltura para Nonato.

    — Atención de todos. Libertad para Nonato dos Santos. ¿Quién es Nonato dos Santos? (Atenção todo mundo ! Quem é Nonato dos Santos ?) — Perguntou o guarda.

    — Soy yo, señor. (Sou eu, senhor) — respondeu Diego bancando o impostor.
    — ¿Usted es Nonato dos Santos? (Você é o Nonato dos Santos ?)
    — Sí (Sim) — respondeu Diego disfarçando o nervosismo.
    — Arrume suas coisas. O juiz assinou sua liberdade anteontem.
    — Não quero levar nada para a rua, senhor.  Não tenho nenhum documento aqui.
    — Está bem. — disse o guarda com um sorriso abrindo a primeira porta.

Diego entrou num corredor em direção à saída do presídio. Seu coração estava batendo rápido. Sua respiração estava ofegante. “Tenho que me controlar” pensou.


Na segunda porta outro guarda perguntou ao jovem brasileiro nome da mãe e pai, local e data de nascimento.  Pela convivência e amizade Diego sabia os dados de Nonato de cor.

Ao chegar na terceira e última porta, um guarda desconfiado perguntou:
    — Qual seu signo ?  — perguntou o carcereiro com tom enérgico.

Naquele momento mortal Diego ficou numa dúvida terrível: não tinha certeza sobre o signo de seu amigo fraterno.  Nonato odiava falar em horóscopo.  Diego escolheu quase que aleatoriamente:
    — Libra, Senhor.

O guarda olhou para o documento e ficou calado por um tempo. Em seguida sorriu.
    — Nonato: vá com Deus. Juízo, hein ?

Diego mal podia acreditar. Estava livre após dois longos anos !

O jovem brasileiro andou algumas quadras e embarcou no ônibus urbano internacional da linha “Ciudad del Este - Foz do Iguaçu”Tudo parecia tranquilo até que o ônibus foi parado na aduana paraguaia antes de cruzar a fronteira para o Brasil na famosa Ponte da Amizade sobre o rio Paraná.

Policiais entraram no ônibus.  Pediram que todos os passageiros mostrassem os documentos. Diego mostrou a carteira de identidade de Nonato. Outro policial pediu que todos abrissem suas bagagens.  Para alívio do brasileirinho era apenas uma inspeção de rotina no combate ao tráfico de drogas.

O ônibus foi liberado.  Na primeira metade da ponte, as cores da mureta lateral são vermelho, branco e azul (as cores da bandeira do Paraguai); a segunda parte possui as cores verde e amarelo do Brasil.

Quando o ônibus chegou do lado verde-amarelo, Diego teve a certeza de que estava são e salvo em sua amada pátria ! A primeira imagem vista foi de meninos jogando bola descalços num num terreno baldio próximo à margem do rio.  Lágrimas escorriam incontroladamente. Naquele sublime momento Diego renasceu. As lágrimas fizeram um novo homem surgir em liberdade.  Paraguai nunca mais !  Ah … Nonato também foi liberto. Após uma tremenda surra. Durante o espancamento Nonato havia, em seu pensamento, perdoado o amigo impostor. Pensou: “Se fosse comigo faria o mesmo. “

Nota do escritor Sérgio Portugal: Essa é uma história verídica. Os nomes foram trocados. Naturalmente há um pouco de ficção no relato. Conheci pessoalmente Dieguinho (que na verdade possui outro nome). Ele era meu vizinho no tempo em que morava em Foz do Iguaçu, fronteira com o Paraguai. 




segunda-feira, 23 de julho de 2018

Um Réu Diferente




Um Réu Diferente



Paulistano lá da zona leste, era doido esse Ramiro. Nem sei o porquê de ele ter vindo para Curitiba. Não era “inocente de tudo”, sabe? Ele já havia estado preso anteriormente. Morava numa quitinete no bairro do Portão. Trabalhava como digitador. Ganhava pouco, mas o suficiente para manter a moradia. Esse mulato magro de 30 anos namorava a Belinha, uma gatinha, viu?



Tudo estava indo muito bem até o dia em que o casal de namorados foi abordado pela provocação de um cara folgado:



— Ô Gostosa! Quanta saúde, hein? Cachorra! Você nunca mais me deu bola, hein? Ô Belinha, a gente já curtiu junto ... Nem fala com os vizinhos ... O que tá rolando ?



Ramiro percebeu que o sujeito tinha uma arma em suas costas, pois quando o mesmo começou a insultar, ele estava de perfil, possibilitando ser percebida a presença de um revólver em suas costas por trás da jaqueta. Era perceptível também que o indivíduo estava ligeiramente alterado por algum tipo de bebida alcoólica.



“Esse desgraçado é atrevido só porque tá armado! Ele vai pagar...” Pensou.



Belinha conhecia o “sem-futuro”. Era irmão de um “dono de boca de fumo” (traficante local). Ela tinha "ficado" com ele anos atrás.



Belinha começou a discutir:



— Seu idiota! Pau-no-cu! Só fiquei com você uma vez, e era quando eu tinha uns quinze anos! Babaca! Não quero nada com você, seu monte de merda!



Enquanto os dois discutiam, Ramiro deu um bote rápido na arma do babaca e em seguida deu um direto de direita no queixo do “engraçadinho”. O gaiato foi ao chão, perplexo, olhou para Ramiro empunhando o revólver de calibre 38 que tinha sido capturado. Após uma surra homérica, o fiel namorado de Belinha tirou as balas do tambor, jogou a arma para um lado da rua e a munição para outro. Depois daquele espetáculo de baixo nível, Belinha ficou desesperada e gritou:



— Ramiro! Esse cara que você bateu é irmão do Toninho, o traficante lá da esquina! A gangue deles vai te matar! A única alternativa era fugir. Belinha tinha implorado para que ele fosse embora. Ele não quis se humilhar e pedir dinheiro para ela. A namorada não sabia que o rapaz que ela amava estava sem nenhum.



A sensação era de corrosão por dentro. Era como se ele estivesse desertando de uma guerra, mas pela garota ele fazia tudo.



O rapaz foi parar na rodoviária de Curitiba com uma intenção: ir embora. Como ir para São Paulo sem um tostão sequer?



Na rodoviária ele foi para o setor interestadual. Viu uma oportunidade: uma lanchonete. Duas moças trabalhavam lá. Uma delas saiu enquanto a outra ficou no caixa e atendendo o público ao mesmo tempo.



“É agora!”, pensou Ramiro. Como não havia ninguém querendo comprar, ele logo pediu:



— Me vê aquele salgadinho...



— Esse aqui? – indagou a moça.



— Não. Aquele lá no fundo...



— Ah, tá...



Quando a moça foi para o fundo do estabelecimento pegar o requerido alimento, Ramiro abriu furtivamente a gaveta do dinheiro e pegou uma quantia equivalente a um salário mínimo na época.



A atendente trouxe a encomenda e Ramiro perguntou:



— Quanto é?



— Dois reais.



A compra foi paga com o dinheiro exato, não necessitando de troco, saiu sem levantar suspeita.



Ramiro estava na fila do guichê para comprar passagem rumo a São Paulo, quando foi abordado por dois policiais militares. O policial mais velho foi logo falando alto:



— Aí magrão! Acompanha “nóis” aí!



O Suspeito em questão não demonstrou nervosismo. Os policiais o revistaram e acharam o maço de dinheiro envolto num elástico. Na frente dos demais freqüentadores da rodoviária, os policiais tentaram transparecer seriedade. Satisfeitos com a prisão, demonstraram cavalheirismo ao devolver o dinheiro para a moça da lanchonete.



Se forem seguidos os padrões da lei, um condutor de prisão não pode devolver o dinheiro ou objeto à vítima imediatamente, pois é a prova do processo. Esse tipo de gentileza sempre denota erro na função policial. Sob este ponto de vista Ramiro percebeu algo nítido através desta ação: olhares e tons de voz mostraram que um dos policiais estava paquerando a funcionária da lanchonete. O PM paquerador falou em tom orgulhoso e exibido na frente das funcionárias e espectadores:



— É magrão... A mulher da limpeza viu você “ganhando” a grana! Acompanha “nóis” aí. Você tá preso.



Os PMs levaram o recém-preso para a sala da base da Polícia Militar no segundo andar da Rodoviária. Ao fechar a porta da sala, os policiais começaram a espancar o preso. Este, com as mãos algemadas para trás, conseguiu acertar um chute no rádio de comunicação da polícia. O rádio caiu no chão espatifado em vários pedaços. O policial mais velho esbravejou:



— Desgraçado! Ladrãozinho filho da puta!



Os dois policiais continuaram a espancar o cativo, desta vez com mais raiva. O réu Ramiro foi conduzido ao Distrito Policial situado mais próximo do local da ocorrência, como está previsto no Código Penal Brasileiro. Lá o escrivão perguntou nome, endereço etc. Ramiro negou-se a responder as perguntas. Quando os policiais da delegacia insistiram, ele limitou-se a dizer:



— Vocês já têm meus documentos. Não vou responder nem assinar nada.



O Escrivão, furioso, gritou:



— O quê?! Você não vai assinar a nota de culpa?!



Um policial desferiu um tapa no pescoço dele. Ramiro, num ato de rebeldia, avançou na direção do escrivão e quebrou o computador e a impressora. Após uma baita surra o réu foi conduzido ao cárcere daquela delegacia.



Os policiais jogaram o corpo quase desfalecido de Ramiro junto aos outros presos. Um dos policiais, para produzir intriga, gritou:



— Esse cara aí é estuprador, cagüeta (delator), vocês não vão deixar barato, vão?



Quando o policial fechou a grade, um dos presos perguntou:



— E daí maluco?! Qual é a sua? Pelo jeito você deve, né?



Ramiro respondeu calmo e seguro de si:



— Olha, se vocês quiserem me bater, tudo bem, mas vocês preferem acreditar na polícia ou no ladrão? Por acaso eu trouxe alguém preso comigo? Mano, acabei de quebrar o computador do escrivão, apanhei feito "gente grande"!



Um preso mais velho comentou com sabedoria:



— Olha, o maluco tá certo. A gente não tem que abraçar idéia de verme, tá ligado? Na minha vida já vi muito inocente apanhar porque a polícia “botou pilha”.



Os presos não espancaram Ramiro. Perceberam que era mais uma vítima da covardia do Estado coator. Vinte e poucas horas mais tarde, o recém presidiário foi conduzido ao centro de triagem. Esse órgão tem por finalidade distribuir presos para presídios do departamento penitenciário do estado.





II





Os pensamentos de Ramiro dentro do camburão, como são conhecidas as viaturas ultra desconfortáveis destinadas ao transporte de presos no Brasil, serviu como fuga para o sofrimento: “Ah, Belinha! minha deusa inspiradora de bons pensamentos, meu abrigo contra qualquer tormenta! Te amo para sempre, meu amor!” Dentro do camburão ele pensava na namorada como se fosse um navio que há muito partiu. Belinha era o único remédio contra inúmeras violências. A doçura da lembrança do passado era intercalada com um sentimento de culpa: “Eu estraguei tudo! Nunca mais vou poder ver minha princesa! Se voltar lá, ou vou matar ou serei morto! Acabou nosso namoro!”



Ao desembarcar no centro de triagem, um agente penitenciário ordenou que o preso tirasse toda a roupa para revistá-lo. Ramiro obedeceu calado. O agente penitenciário perguntou nome, endereço, profissão etc. Ramiro não respondeu nada. Ele foi conduzido até outra cela com outros presos. O agente penitenciário o advertiu:



— Se você continuar a não responder o que eu te pergunto, você vai “arranjar pra cabeça”, ladrão!



Dentro da cela ele ficava calado o tempo todo, era misterioso, intrigante... Os presos que tentavam conversar com ele obtinham apenas respostas curtas e evasivas.



Horas passaram e ele foi convocado a sair da cela e acompanhar o agente penitenciário até a sala de cadastro prisional.  Onde é feito o registro das impressões digitais, foto, altura etc. Nesse tipo de ambiente o ser humano cataloga o próprio ser humano. Não muito diferente do que é feito com um boi em uma fazenda.



Antes de entrar na sala de biometria e foto, Ramiro foi mais uma vez advertido por um agente:



— Se você não responder às perguntas, vai pro latão, ouviu?



O "latão" é a cela escura e geralmente solitária onde os réus sofrem castigo.



Havia mais dois presos na fila para fotografia e registro de digitais no scanner. Ramiro continuou quieto o tempo todo. Havia naquela sala apenas o fotógrafo catalogador e um carcereiro. Ao chegar a vez dele o fotógrafo ordenou:



— Encoste a cabeça na parede.



Na parede estavam pintados vários números para que ficasse registrada a altura do preso. O fotógrafo estava regulando o tripé fotográfico e, quando foi acoplar a câmera na base, Ramiro de súbito a arrancou da mão do fotógrafo. A câmera foi arremessada contra o chão, sendo quebrada em vários pedaços. Em seguida quebrou o computador e o scanner para digitais.



O chefe de segurança do centro de triagem ficou furioso com os agentes:



— Como podem vocês, seus incompetentes, deixarem este louco quebrar tudo?!



Os carcereiros deram uma surra nele e o conduziram à cela castigo. No dia seguinte era dia de visita dos presos que ali estavam por medida de segurança em relação aos outros presos (ex-policiais, delatores, advogados, empresários que receavam convívio com bandidos, estupradores etc.).



Ramiro aproveitou a fragilidade da ocasião e entupiu o vaso sanitário com um pano de chão imundo, apertou a descarga e fez transbordar água por todo o centro de triagem, um ambiente de apenas um corredor (galeria), com vinte celas com uns cinco presos cada. Foi água por todo lado, provocando uma confusão generalizada.



O chefe de segurança foi categórico:



— Tirem este louco daqui! Mandem ele pra Casa de Custódia ou pra qualquer cadeia que tenha vaga! Vamos! Agora! Não vou tirar foto desse cara. Esse lixo é só um ladrãozinho de rodoviária.



No mesmo dia o réu Ramiro, após ser espancado mais uma vez, foi para a Casa de Custódia de Curitiba, um presídio de segurança máxima localizado no bairro da Cidade Industrial.





III





Um furgão ultra desconfortável levou o interno ao famigerado presídio. Após uns 40 minutos dentro dum cubículo apertadíssimo e escuro, enfim chegou ao destino. Ao desembarcar na Casa de Custódia de Curitiba, teve que tirar a roupa outra vez. Guardas lhe entregaram uniforme laranjado, junto com uma sacola com um kit contendo sabonete, toalha, camiseta, fronha, escova de dentes, barbeador, pasta de dentes, cobertor, lençol, travesseiro e colchão.



Um agente penitenciário perguntou:



— Qual é o seu nome e a data de nascimento?



— Tá tudo aí no prontuário. — respondeu Ramiro secamente.



— Que desgraçado! Ainda por cima não tem nenhuma foto no prontuário desse ladrão.



Passaram uns cinco minutos e um agente veio com uma câmera digital para catalogar o interno.



— Vamos, interno! Encoste as costas na parede. — Gritou o agente.



Ramiro esboçou obediência, mas não resistiu à fúria: desferiu um pontapé certeiro na maldita câmera, quebrando-a em mil pedaços. Logo depois, adivinhe, levou outra surra.



Após a reprimenda física, foi levado para uma galeria com estilo futurístico, onde não havia grades, e sim acrílico transparente de alto impacto e portas de aço. Era por volta de 2006, e não fazia muitos anos que aquele presídio tinha sido inaugurado.



O réu, agora chamado de interno, ficou impressionado. Nem parecia terceiro mundo. Todos os presos estavam com uniforme laranja, e os próprios internos fechavam as portas das celas quando solicitados por alto-falante. A arquitetura do presídio era estilo norte-americano, só que na cela que originalmente era pra dois, a arquitetura tupiniquim “espremeu” fazendo caber cinco detentos. Na cela havia uma pia de aço inox emendada com um vaso sanitário também do mesmo material. O espaço era apertado: 2 metros e meio de comprimento por dois e meio de largura. No fundo os presos tinham a visão de duas janelas estreitas de acrílico de alto impacto e, acima, próxima ao teto, uma pequena abertura para ventilação. A porta da cela abria com comando eletrônico a partir da sala de controle de segurança. Esta sala era revestida de acrílico de alto impacto onde um agente abria as portas de todas as celas das três galerias do presídio, com 36 celas cada.



A porta era de aço com uma pequena janelinha de acrílico com uma abertura abaixo para que os alimentos e correspondências fossem entregues. A sala de controle só não conseguia fechar a porta. Os presos tinham o dever de fechar a porta quando solicitados. A cela, quando estava fechada, não poderia em hipótese alguma ser aberta sem que isso fosse percebido pelo painel eletrônico da sala de controle. Havia câmeras de vídeo de segurança por todo os lados. No passado só havia uma falha de segurança: a ausência de muro. Mas após uma fuga bem sucedida promovida em 2005, foi construído um muro muito alto com guardas “armados até os dentes”. A fuga ocorreu por causa de um grupo de criminosos destemidos que cortaram os alambrados em volta. Os bandidos arrebatadores trocaram tiros com os guardas e quebraram algumas paredes de celas com marretadas... Mas isso é outro fato. O que importa é que depois do muro e da colocação de cabos de aço suspensos, para impedir aterrissagem de helicópteros, a Casa de Custódia tornou-se uma fortaleza anti-fuga. A CCC, como era conhecida, também era à prova de rebelião, por causa do sistema de abertura de portas.



Ramiro ficou sozinho numa cela com quatro camas de concreto. A porta ficou aberta depois que ele entrou. No alto falante o guarda falou:



O réu, agora chamado de interno, ficou impressionado. Nem parecia terceiro mundo. Todos os presos estavam com uniforme laranja, e os próprios internos fechavam as portas das celas quando solicitados por alto-falante. A arquitetura do presídio era estilo norte-americano, só que no lugar que originalmente era pra dois, a arquitetura tupiniquim “espremeu” fazendo caber cinco detentos. Na cela havia uma pia de aço inox emendada com um vaso sanitário também do mesmo material. O espaço era apertado: 2 metros e pouco de comprimento por dois de largura. No fundo os presos tinham a visão de duas janelas estreitas de acrílico de alto impacto e, acima, próxima ao teto, uma pequena abertura para ventilação. A porta da cela abria com comando eletrônico a partir da sala de controle de segurança. Esta sala era revestida de acrílico de alto impacto onde um agente abria as portas de todas as celas das três galerias do presídio, com 36 celas cada.



A porta era de aço com uma pequena janelinha de acrílico com uma abertura abaixo para que os alimentos e correspondências fossem entregues. A sala de controle só não conseguia fechar a porta. Os presos tinham o dever de fechar a porta quando solicitados. A cela, quando estava fechada, não poderia em hipótese alguma ser aberta sem que isso fosse percebido pelo painel eletrônico da sala de controle. Havia câmeras de vídeo de segurança por todo os lados. No passado só havia uma falha de segurança: a ausência de muro. Mas após uma fuga bem sucedida promovida em 2005, foi construído um muro muito alto com guardas “armados até os dentes”. A fuga ocorreu por causa de um grupo de criminosos destemidos que cortaram os alambrados em volta. Os bandidos arrebatadores trocaram tiros com os guardas e quebraram algumas paredes de celas com marretadas... Mas isso é outro fato. O que importa é que depois do muro e da colocação de cabos de aço suspensos, para impedir aterrissagem de helicópteros, a Casa de Custódia tornou-se uma fortaleza anti-fuga. A CCC, como era conhecida, também era à prova de rebelião, por causa do sistema de abertura de portas.



Ramiro ficou sozinho numa cela com quatro camas de concreto. A porta ficou aberta depois que ele entrou. No alto falante o guarda falou:



— Atenção interno da cela 206, favor fechar a porta!



Depois ouvia-se uma campainha com som de aeroporto: “Ding-dong”.



— Atenção interno da cela 206, feche a porta agora!



Um preso que trabalhava na faxina gritou:



— Ô mano! Aqui a gente é obrigado a fechar a porta, faz favor, coopere!



— Se eles quiserem me dar outra surra, é tudo com eles! — respondeu Ramiro.



– Mas irmão, o sistema na “CCC” é assim, todos os presos tem que fechar a porta, por que é que você tem que ser diferente? – retrucou o preso da faxina.



— Irmão, não leve a mal, mas eu não sou carcereiro, sou preso! Eles é que fechem, se eles quiserem me botar no castigo, “demorou”!



Todos os presos da faxina tiveram que se recolher para o agente penitenciário entrar e fechar a porta da cela do Ramiro.



O novo interno era um estranho no ninho, não cedia às pressões de maneira alguma. Permanecia calado, sozinho, só saía para tomar banho de chuveiro. Os chuveiros ficavam fora da cela. Não tinham torneira. A ducha era controlada pela torre de controle. O banho durava três minutos apenas. Era água fria.



IV



Uma semana passou, e os guardas juntamente com os presos da faxina se viram em apuros. Toda vez que o interno Ramiro ia para o chuveiro, todos os demais tinham que se recolher aos seus respectivos cubículos para obedecerem à regra de segurança. Depois, a porta de segurança abaixo da sala de controle abria para os agentes entrarem e fecharem a porta do preso rebelde.



Lino, um réu preso por tráfico de drogas, morava com dois doentes mentais numa cela. Lino era muito paciente e calmo, e tinha fama de apaziguador. Agentes junto com os presos da faxina perguntaram se ele topava morar com o "louco". Lino respondeu de imediato:



— “Demorou”! Pode mandar esse maluco aqui que ele será bem-vindo.



Ramiro tinha se recusado a fazer a barba. Na CCC todos eram obrigados. Lino milagrosamente conseguiu convencê-lo a barbear-se.



Lino era o único ser que conseguia manter diálogo com o rebelde. Lino sempre teve muita preocupação e apreço pelos doentes mentais. Defendia todos, tratando-os como se fossem irmãos e filhos. O réu rebelde lia livros o dia inteiro, devorava tudo que tinha letras. Depois de dias, Lino conversava mais ou menos meia hora à noite com Ramiro. Tornaram-se grandes amigos. Um dia Lino perguntou:



— E sua mãe lá em São Paulo? Você não quer mandar uma carta pra ela? Eu tenho selo, papel e envelope. E a Belinha, sua namorada? Não vai escrever pra ela?



— Elas não sabem que estou preso. Não quero que saibam. Belinha não sabe o telefone da minha família. Quando eu sair, se um dia eu sair, vou procurar minha mãe e dar um abraço nela, e dizer que eu tava na Amazônia...



Ramiro era irredutível na questão do contato com os parentes. Não queria que soubessem de sua situação degradante. Era perceptível que ele amava sua mãe, mas não queria dividir o sofrimento com ela.



V



Três meses se passaram e finalmente chegou o dia de Ramiro ir ao fórum: ele teria audiência com o juiz na vara criminal. Lino aconselhou:



— Olha lá, Ramiro, juízo, hein? Vai lá, responde às perguntas do juiz... A tua “bronca” é pequena, viu? É papo de liberdade, valeu?



Ramiro ficou em silêncio como de costume.



Minutos se passaram e os presos de uniforme laranjado ouviram no alto-falante:



— Ramiro dos Santos, Porta Principal.



A porta abriu, fazendo um ranger típico de som de motor elétrico e engrenagens de aço. Ramiro saiu caminhando devagar até a porta de segurança. Foi revistado, algemado e conduzido até o furgão desumano e desconfortável. Duas horas mais tarde estava na frente do fórum.



No fórum outra ilegalidade do Estado repressor: uma cela superlotada onde os presos não tinham onde sentar. Eram presos de diferentes penitenciárias que conversavam alto, comparando os infernos dos presídios. Ramiro encontrou um ex-colega de cadeia, quando tinha estado preso em Araraquara no estado de São Paulo por furto. Como de costume, conversou o mínimo.



Após mais de duas horas esperando em pé, foi algemado até a sala do juiz. O interrogado se manteve calado, sentado numa cadeira com rodinhas.



— Profissão? Data de nascimento?



Ramiro continuou calado. O juiz intuitivamente percebeu que não se tratava de um réu comum. Pensou e, após alguns segundos, disse:



— Escute, Sr. Ramiro dos Santos, vamos, desabafe...



— Fui torturado diversas vezes. Vossa Excelência deposita fé nas palavras de torturadores intitulados policiais... Não há “rés furtiva” (objeto ou dinheiro apreendido como prova num processo criminal), como pode o Poder Judiciário ter aceitado uma denúncia sem cabimento desse tipo? – falou Ramiro em tom de desespero.



— Um momento, Sr. Ramiro... Há sim “rés furtiva” o Sr. Furtou 355 reais da lanchonete na rodoviária de Curitiba. — retrucou o juiz.



— Onde está esse dinheiro?! Mostre-me! Se Vossa Excelência apóia torturadores mentirosos, Vossa Excelência é sim co-autor de déspotas monstruosos que cometem abusos de autoridade!



O juiz ficou vermelho de raiva e ao mesmo tempo espantado com um preso falando português correto, algo raro no universo brasileiro. O magistrado respirou fundo, olhou para o teto e disse:



— Prossiga, Sr. Ramiro.



— Alguém ficou sem dinheiro? Alguém sofreu prejuízo? A única pessoa que saiu perdendo nessa história toda fui eu! Sofri tortura, humilhação! Recuso-me a assinar qualquer papel. Já se passaram meses e continuo a não assinar nada! Tenho nojo de tudo que vem do governo! Nojo!



O juiz a essa altura saiu do sério. Ordenou à sua escrivã:



— Dona Clotilde, por favor, digite aí uma liberdade provisória para o Sr. Ramiro. Chega de choradeira!



Enquanto a funcionária digitava, o juiz prosseguiu:



— É, Sr. Ramiro... O Senhor disse que não assinava nenhum papel... E a sua liberdade? O seu alvará de soltura? O Senhor vai assinar?



— Não. Não assino nada! — disse o réu de maneira categórica.



O juiz ficou abismado e atônito:



— Ô rapaz! É a sua liberdade! Basta assinar que você vai embora! Você quer voltar para a prisão?



Ramiro continuou inflexível:



— Eu não assinarei nenhum papel.



O juiz perdeu a postura e o decoro jurídico:



— Ah, então você vai voltar pra cadeia! Você é um louco! Tirem esse idiota daqui! Levem ele pra Casa de Custódia! Lá é o lugar dele! Que apodreça na prisão!



O réu e os policiais sairam da sala. O juiz botou a mão no queixo, fez uma careta de desaprovação e comentou:



— Dona Clotilde, em mais de vinte anos de magistratura nunca vi um cara jogar a liberdade fora desse jeito! Mas calma... Esse carinha ainda vai assinar o papel... Ninguém é tão doido desse jeito... Ah, a Senhora, vai ver, Dona Clotilde, A Senhora vai ver...



Quando Ramiro chegou na “CCC” Lino ficou horrorisado com a notícia:



— Meu, você jogou a liberdade fora!!! Ô meu, você não tem juízo, Ramiro?!!



Entre os presos e os agentes penitenciários, não se falava outra coisa. Estavam todos incrédulos com a loucura dele.



Três semanas depois, o juiz expediu o alvará de soltura. O réu deveria assinar o documento para sair da prisão. Os agentes se dirigiram ao Ramiro com surpreendente educação:



— Olha Ramiro... É a sua liberdade. Você já causou muita confusão. É só assinar!



Lino gritou:



— Vai lá, Ramiro! Mano, assine, é a sua liberdade!! Assine! Viva!!



Ramiro pegou a caneta, esboçou um movimento de quem iria assinar e subitamente rasgou o alvará de soltura!



— Eu não assino nada ! — disse secamente.



Todos ficaram boquiabertos. O réu preso tinha rasgado sua liberdade. Lino ficou inconformado, olhou para o teto e gritou:



— Oh meu Deus! Por que é que o Senhor não manda um documento desses pra eu assinar?! Ramiro: você é doido! Depois dessa eu preciso tomar um calmante.



Algumas semanas passaram e foi ouvida a seguinte frase no alto-falante:



— Ramiro dos Santos, porta principal!



Lino deu um tapinha no ombro de Ramiro e falou:



— Mano, eu acho que “cantou” o fórum... Juízo, hein?



O juiz titular da Vara Criminal chamou o réu Ramiro dos Santos para algo meramente lúdico: dois procuradores e um desembargador queriam conhecer “o maluco que rasgou o alvará de soltura”.



O juiz, após conversar com Ramiro, finalizou:



— O processo foi arquivado por falta de materialidade, ou seja, por ausência de indícios probatórios consistentes. O Senhor está livre. Não se preocupe, não precisa assinar nada. A vara criminal irá conceder uma exceção e o Senhor receberá uma passagem de ida para São Paulo. Aqui está. Juízo, hein?



Ramiro mal podia acreditar que tinha em suas mãos uma passagem para sua cidade. Voltou para a Casa de Custódia para pegar os pertences pessoais. Os agentes não permitiram que ele se despedisse dos amigos. Foi de carona numa viatura policial para a rodoviária e, quando o ônibus partiu, escorreu-lhe uma lágrima ao lembrar-se de Belinha. Nunca mais ninguém teve notícias dele. E sabe o Lino? Ele é irmão do escritor desse conto. Todos os meses o visitava naquele presídio medonho. Por isso fiquei sabendo desse fato. Conheci Belinha, e ela me pediu para tentar localizar Ramiro, mas fui frustrado no intento. Mudei os nomes e alguns acontecimentos por respeito à memória das pessoas envolvidas.



FIM

quarta-feira, 18 de julho de 2018

O Gato Brasileiro - Sir Arthur Conan Doyle 1898



O Gato Brasileiro (The Brazilian Cat) - Sir Arthur Conan Doyle - 1898

Essa novela foi escrita por Arthur Conan Doyle em 1898. Tradução de Sérgio Portugal em 2018. A trama ocorre no final da década de 1890. Nesse período praticamente não havia automóveis. O telefone estava nascendo e o telegrama era o meio de comunicação mais dinâmico. Arthur Conan Doyle traz junto com essa deliciosa aventura um relato dos costumes de uma época. Para quem não sabe, Arthur Conan Doyle foi o escritor que criou o famoso detetive Sherlock Holmes. Havia muita formalidade na comunicação entre as pessoas pertencentes à aristocracia daquele tempo. No século atual a linguagem é muito mais informal. Decidi traduzir esse texto por não ter encontrado nenhuma tradução que me tivesse me agradado. Arthur Conan Doyle (22 de maio de 1859 - 7 de julho de 1930)
criou o famoso Sherlock Holmes, o mais filmado personagem de ficção de todos os tempos segundo o Livro dos Recordes Guiness. Esse médico escocês inspirou inúmeros autores, uma fã sua era nada mais nada menos que Agatha Christie !!!
As ilustrações são de Sidney Edward Paget (1860 - 1908), um ilustrador britânico famoso. São universalmente conhecidas os desenhos de Sherlock Holmes na revista "The Strand Magazine". Foi ele quem deu a forma ao mais famoso dos detetives.

Boa leitura !!!

O Gato Brasileiro - Sir Arthur Conan Doyle - 1898 (The Brazilian Cat)


É difícil para um jovem ter gostos caros, grandes expectativas, conexões aristocráticas, mas sem dinheiro real em seu bolso e nenhuma profissão pela qual possa ganhar algum. O fato era que meu pai, um homem bom, otimista e bon vivant, tinha tanta confiança na riqueza e benevolência de seu irmão mais velho solteirão, Lorde Southerton, que ele tinha como certo que eu, seu único filho, nunca seria chamado a ganhar a vida por mim mesmo. Ele imaginou que, se não houvesse uma vaga para mim nas grandes propriedades de Southerton, pelo menos haveria algum posto no serviço diplomático que ainda permanece para a reserva especial de nossas classes privilegiadas. Ele morreu cedo demais para perceber como seus cálculos estavam errados. Nem meu tio nem o Estado deram qualquer atenção ou demonstraram interesse em minha carreira. Ocasionalmente meu tio me presenteava com alguns faisões, ou carne de lebres, era tudo o que me chegava para me lembrar que eu era herdeiro da Casa de Otwell e de uma das maiores fortunas do país. Na verdade eu era apenas um solteiro aristocrático morando em um conjunto de apartamentos em Grosvenor Mansions, sem ocupação, exceto a de atirar em pombos e de jogar polo em Hurlingham. Mês a mês, percebi que era cada vez mais difícil conseguir dinheiro emprestado junto aos bancos e agiotas, ficava cada vez mais difícil conseguir crédito. A ruína estava no caminho, e com o passar dos dias eu a via mais clara, mais próxima e absolutamente inevitável.

Grosvenor Mansions, Condomínio onde Marshall King morava


O que me fez sentir minha própria pobreza foi que, além da grande riqueza de Lorde Southerton, praticamente todos os conhecidos de minhas relações eram razoavelmente abastados. O mais próximo deles era Everard King, sobrinho de meu pai e meu primo em primeiro grau, que levara uma vida aventurosa no Brasil e que agora retornara ao seu país para estabelecer-se com o capital que acumulara. Nunca se soube como ele ganhava dinheiro, mas parecia ter muito, pois comprou a propriedade de Greylands, perto de Clipton-on-the-Marsh, em Suffolk. Durante o primeiro ano de seu retorno à Inglaterra, ele não me deu mais atenção que o avarento de meu tio; mas, finalmente, numa manhã de verão, para meu grande alívio e alegria, recebi uma carta em que ele me convidava para partir naquela mesma data e passar uns dias na localidade de Greylands Court. Eu estava esperando a visita do oficial de justiça sobre a decretação de minha praticamente inevitável falência pelo Tribunal de Falências, e aquela interrupção pareceu-me quase providencial. Fiquei pensando na possibilidade de, quem sabe, pedir algum dinheiro emprestado a esse parente meu que eu ainda não conhecia, poderia me safar da ruína financeira. Em nome da reputação da família, ele talvez pudesse impedir que eu fosse encostado contra a parede. Ordenei ao meu criado que fizesse minha mala e rumei na mesma tarde para Clipton-on-the-Marsh.

Greylands Court, residência de Everard King


Depois de pegar um trem secundário em Ipswich, desembarquei numa pequena estação deserta, situada em meio a um campo ondulado e relvoso, com um rio lento e sinuoso entrando e saindo em meio ao vale, entre margens altas e lamacentas, o que mostrava que o local era litoral. Não havia carro algum à minha espera (descobri posteriormente que o telegrama havia se atrasado), de modo que peguei uma charrete nas imediações da estação. O cocheiro era um excelente sujeito, estava cheio de elogios ao meu parente, soube por ele que o Sr. Everard King era um nome comentado naquela parte do país. Ele promovia festas para as crianças da escola, tinha aberto as portas de seu pequeno jardim zoológico para os visitantes, havia contribuído para instituições de caridade — em suma, sua benevolência era tal que meu cocheiro só podia atribuí-la a ambições parlamentares.



Minha atenção foi desviada do entusiasmo de meu cocheiro pelo surgimento de um belíssimo pássaro que pousou num poste telegráfico ao lado da estrada. No começo pensei se tratar de um gaio, mas era maior, com uma plumagem mais brilhante. O condutor da charrete explicou imediatamente sua presença dizendo que pertencia ao próprio homem que íamos visitar. Parece que a aclimatação de criaturas estrangeiras era um de seus hobbies, e que ele trouxe consigo do Brasil uma série de pássaros e outros animais para criar na Inglaterra. Quando passamos pelos portões do Greylands Park, tivemos amplas evidências desse gosto dele. Alguns pequenos cervos malhados, um curioso porco chamado, salvo engano, caititu, um papagaio maravilhosamente emplumado, algum tipo de tatu, e uma criatura estranha muito gorda com dedos voltados para dentro, estavam entre os animais que observei à medida que nos dirigíamos ao longo do caminho sinuoso.



Everard King, meu primo, estava em pé no alto dos degraus de sua casa, ele havia nos visto à distância e tinha suposto que era eu. Sua aparência era muito simpática e benevolente, era de baixa estatura e entroncado, uns quarenta e cinco anos talvez. Tinha um rosto redondo e bem-humorado, bronzeado do sol tropical com mil rugas castigado pelo calor. Usava roupas de linho branco rústico, no estilo verdadeiramente rural, com um charuto entre os lábios e um grande chapéu panamá na cabeça. Era uma figura como a que se associa a um bangalô, e parecia curiosamente deslocada em frente a essa ampla mansão inglesa de pedra, com suas sólidas alas e seus pilares palacianos que ladeavam a porta.

     — Querida! — gritou ele, olhando por cima do ombro — Querida, aqui está nosso convidado! Bem-vindo, bem vindo a Greylands! Estou encantado em conhecê-lo, primo Marshall! Grato por sua visita. É uma honra sua presença nesse lugar pacato e sonolento.
Nada poderia ser mais cortês que suas maneiras, e ele me fez sentir à vontade por um instante. Mas toda sua cordialidade não foi suficiente para compensar a frieza e até mesmo grosseria por parte de sua esposa, uma mulher alta, pálida que apareceu quando ele a chamou. Ela era, creio eu, de origem brasileira, embora falasse um inglês excelente. A princípio atribuí sua atitude à sua ignorância sobre nossos costumes. Na verdade ela não tentou esconder de mim que minha presença em Greylands Court não a agradava. Ela era possuidora de um par de olhos escuros particularmente expressivos. E eu os li claramente desde o começo: ela desejava que eu voltasse para Londres o mais breve possível.

No entanto, minhas dívidas eram demasiadamente urgentes e meus desígnios para com meu parente abastado eram vitais para me deixar permitir ficar incomodado pelo mau humor de sua esposa, desse modo, desconsiderei sua frieza e retribuí a extrema cordialidade de suas boas-vindas. Ele não poupou esforços para me deixar o mais confortável possível. Meu quarto era encantador. Ele me implorou para eu dizer-lhe qualquer coisa que pudesse aumentar minha felicidade. Estava na ponta da minha língua para informá-lo que um cheque em branco ajudaria materialmente para esse fim, mas senti que poderia ser prematuro no estado atual de nossas relações. O jantar foi excelente, e quando depois nos sentamos juntos fumamos charutos Havana e bebemos café, que mais tarde ele me disse ser proveniente de sua própria plantação, pareceu-me que todos os elogios do cocheiro eram justificados, e que eu nunca havia conhecido alguém tão amistoso e hospitaleiro.



Mas, apesar de sua natureza amigável e alegre, ele era um homem com uma determinação forte e um temperamento explosivo. Disso tive certeza na manhã seguinte. A curiosa aversão que a sra. Everard King tinha por mim era tão forte que sua atitude no café da manhã era quase ofensiva. Mas suas intenções tornaram-se inequívocas quando o marido deixou o quarto.

     — O melhor trem do dia parte ao meio dia e quinze. — disse ela.
     — Mas eu não estava pensando em partir hoje. — respondi, francamente, talvez até desafiadoramente, pois estava determinado a não ser expulso por aquela mulher.
     — Se prefere assim ... — disse ela com a expressão mais insolente possível no olhar.
     — Tenho certeza do que quero. — retruquei. — se tivesse abusando da hospitalidade do Sr. Everard King, com certeza ele me daria a entender.
     — O que é isso? O que é isso? — ouviu-se a voz dele vinda de outro cômodo. Ele tinha ouvido minhas últimas palavras à distância. Quando ele viu nossos rostos percebeu o que tinha ocorrido. Seu rosto gorducho e alegre se transformou subitamente em uma expressão absolutamente feroz.
     — Poderia por favor nos deixar a sós por um instante, Marshall? — disse ele. (Aproveito para me apresentar: meu nome é Marshall King)
Ele fechou a porta atrás de mim e então, por um instante, ouvi-o falando com voz baixa em tom ameaçador para sua esposa. Esta quebra de hospitalidade evidentemente atingiu seu ponto mais fraco. Não sou bisbilhoteiro, Desse modo saí para o gramado. Logo ouvi um passo apressado atrás de mim, e lá estava a senhora, com o rosto pálido de nervosismo e os olhos vermelhos de lágrimas.
     — Meu marido me pediu para pedir desculpas a você, Sr. Marshall King — disse ela, de pé com os olhos baixos diante de mim.
     — Por favor, não se incomode com isso, Sra. King.

Seus olhos escuros repentinamente me fuzilaram.
     — Seu idiota! — ela sussurrou com veemência e caminhou de volta para a casa.
O insulto foi tão ultrajante, tão insuportável, que fiquei parado olhando para ela com perplexidade. Eu ainda estava lá quando meu anfitrião se juntou a mim. Ele com seu jeito alegre e bonachão mais uma vez.



     — Espero que minha esposa tenha se desculpado por suas tolices — disse ele.
     — Ah, sim, certamente!
Ele pegou no meu braço e caminhou comigo pelo gramado.
     — Você não deve levar a sério. — disse ele — me entristeceria imensamente se você reduzisse sua visita em uma hora. O fato é que não deve haver segredos entre parentes; minha pobre e querida esposa é terrivelmente ciumenta. Ela odeia quando alguém — homem ou mulher — fique por algum momento entre nós. Seu ideal é uma ilha deserta e um eterno tête-à-tête. Isso explica algumas atitudes que são, admito, algo próximo da loucura. Prometa-me que você não pensará mais nisso.

     — Não, não, claro que não.
     — Então acenda este charuto e venha comigo. Vou te mostrar meu pequeno zoológico.

Ele passou a tarde inteira mostrando sua coleção de fauna, que incluíam pássaros, animais diversos e até répteis que ele havia importado. Alguns estavam livres, outros em jaulas e alguns inclusive dentro da casa. Ele falou com entusiasmo sobre seus êxitos e seus fracassos, dos nascimentos e das mortes, e soltava exclamações entusiasmadas no tom de um menino em idade escolar quando algum pássaro exuberante se agitava na grama ou algum animal exótico se esgueirava procurando abrigo. Finalmente ele me levou a um corredor que conduzia a um anexo da casa. No final deste corredor havia uma porta pesada com um trilho corrediço. Lateralmente projetava-se da parede uma manivela de ferro conectada à uma roda e um tambor de guincho. Uma lateral de gradeada com barras robustas estendia-se pela passagem. 


     — Agora vou mostrar-lhe a joia da minha coleção — disse ele. — Há apenas um outro exemplar na Europa, desde que o filhote de Roterdã morreu. É um gato brasileiro.
     — Em que ele é diferente de outro gato qualquer ?
     — Você vai ver, ele respondeu, rindo. Queira por favor abrir esse postigo para olhar aí dentro.



E foi o que fiz. Ao entrar vi uma sala grande, vazia e pavimentada, com pequenas janelas gradeadas na parede. No meio desta sala, estava um felino enorme deitado no meio de um facho de sol. Era tão grande quanto um tigre, mas negro e lustroso como ébano. Era simplesmente um felino preto gigantesco e muito bem tratado; se aquecia e se espreguiçava como faria qualquer gato num banho de de sol. Ele era impressionantemente gracioso, possante e , tão diabolicamente lustroso, que eu não conseguia afastar os olhos da abertura.
     — Ele não é esplêndido ? — perguntou meu anfitrião entusiasticamente.
     — Magnífico! Jamais vi uma criatura tão esplendorosa.
     — Há quem denomine ele como puma negro, mas na realidade não é um puma. Da cabeça à cauda, mede mais de três metros e meio. Quatro anos atrás, ele era apenas uma bolinha de pêlos negros com olhos amarelos. Foi vendido para mim recém nascido na região do alto rio Negro. Sua mãe foi morta a golpes de lança após ter matado uma dúzia de nativos.
     — Eles são tão ferozes assim?
     — São as criaturas mais absolutamente traiçoeiras e sanguinárias em toda a Terra.  Se você falar sobre esse felino brasileiro para um índio daquela região ele ficará arrepiado de medo. Esses felinos preferem carne humana a outra carne de caça. Esse indivíduo em particular nunca experimentou sangue vivo ainda, mas quando experimentar será um terror.  Ele não admite ninguém além de mim em sua jaula. Nem mesmo Baldwin, seu tratador, se atreve a se aproximar. Quanto a mim, sou para ele mãe e pai ao mesmo tempo.
Enquanto ele falava, abruptamente abriu a porta e, para meu espanto, entrou se esgueirando e fechou a porta rapidamente atrás dele. Ao som de seu rugido a enorme e ágil criatura se levantou. O enorme felino bocejou e esfregou carinhosamente sua cabeça redonda e negra contra a cintura de seu mestre, e este retribuiu suas carícias.
     — Agora Tommy, para dentro da sua jaula ! — disse ele.
O gato monstruoso foi para um lado do recinto e sentou-se debaixo de um teto gradeado. Edward King saiu e começou a girar a manivela de ferro que mencionei. A fileira de barras no corredor então começou a mover-se e passar por uma fenda na parede para fechar a frente do cercado. Quando esta jaula móvel foi fechada, ele abriu a porta e me convidou para entrar no local, onde a atmosfera pesada estava imbuída do cheiro pungente peculiar aos grandes carnívoros.
     — É assim que funciona por aqui. — disse ele. — Nós deixamos ele solto no recinto grande durante o dia para que ele faça exercícios e à noite o colocamos na jaula. Você pode soltá-lo girando a manivela que movimenta a porta de grades, como você viu. Não, não, não faça isso!



Eu havia colocado minha mão entre as barras para acariciar o dorso brilhante da fera. Ele puxou minha mão para fora com um semblante sério.
     —  Te afirmo que isso não é seguro. Não pense porque eu posso tomar algumas liberdades com ele que qualquer outro possa. Ele é muito exclusivo em suas amizades. Não é mesmo, Tommy? Ah, ele ouviu seu jantar chegando! Não é, garoto?

Passos foram ouvidos no corredor, a criatura levantou-se e ficou a andar de um lado para o outro pela jaula estreita, os olhos amarelos cintilavam e a língua vermelha agitava e tremia por entre os dentes pontiagudos. Um tratador entrou com uma fatia generosa de carne crua em uma bandeja e empurrou-a através das barras. O animal pegou a carne com extrema rapidez, levou-a para um canto e lá, segurando-a entre as patas, rasgou-a e puxou-a, levantando seu focinho ensanguentado de quando em quando para nos olhar. Era um espetáculo perverso, mas fascinante.
     — Você deve estar surpreso que eu goste desse animal, não é mesmo? disse meu primo quando saímos do recinto. —  especialmente porque fui eu quem criou ele. Não foi fácil trazê-lo do centro da América do Sul para cá são e salvo. E, como te disse, ele é o exemplar mais belo que há em toda a Europa. A diretoria do Zoológico daria qualquer coisa para tê-lo, mas a verdade é que não posso me separar dele. Bem, creio que já abusei muito da sua paciência com meu passatempo, acho melhor seguirmos o exemplo de Tommy e jantar.”
Meu parente da América do Sul estava tão absorto com sua propriedade e seus curiosos ocupantes que por algum tempo pensei que em nada mais pudesse estar interessado. No entanto compreendi que ele tinha outros interesses ao ver o grande número de telegramas que recebia. As mensagens chegavam constantemente e ele as abria sempre com uma expressão de ansiedade e máxima atenção. Imaginei se tratar de turfe, ou quem sabe bolsa de valores. Estava claro que ele tinha negócios urgentes e que certamente não tinham relação com os confins de Suffolk. Durante os seis dias de minha estada ele nunca recebeu menos de quatro telegramas por dia, e por vezes até sete ou oito.
Eu ocupei esses dias tão bem que, ao final deles havia conseguido o máximo de cordialidade com meu primo. Todas as noites ficávamos sentados até tarde na sala de bilhar, ele me contando as aventuras mais extraordinárias vividas por ele no continente sul americano, relatos tão arriscados e temerários que mal conseguia associá-los àquele homenzinho bronzeado e gordinho diante de mim. Eu me aventurei em algumas de minhas próprias lembranças da vida em Londres, que o interessaram a tal ponto, que ele prometeu me visitar em Grosvenor Mansions. Ele estava ansioso por ver o lado dinâmico da vida na cidade. E, diga-se de passagem, ele não poderia ter escolhido um guia mais competente. Estava me segurando até o último dia de minha visita, quando me arrisquei a abordar o que me preocupava. Falei com ele francamente de minhas dificuldades financeiras e de minha ruína iminente, e pedi seu conselho, embora esperasse algo mais concreto. Ele me ouviu atentamente, dando fortes baforadas com seu charuto.



     — Mas como ?! — disse ele. — você não é herdeiro de nosso parente Lorde Southerton ?   
     — Tenho todas as razões para acreditar que sim, mas ele jamais me daria qualquer adiantamento.
     — Sim, eu tenho ouvido falar de como ele é sovina. Meu pobre Marshall, sua situação não é nada fácil. Por falar nisso, você tem ouvido alguma notícia sobre a saúde de Lorde Southerton ultimamente ?
     — Ele tem sempre estado numa situação crítica desde minha infância.
     — Ele está sempre com o pé na cova, mas nunca morre. Sua herança pode estar distante ainda. Meu caro, que situação complicada você está !
     — Eu tinha alguma esperança, se o senhor pudesse, sabendo de todas as minhas dificuldades, me adiantar algum …
     — Não diga mais nada, meu caro. — disse ele com a máxima cordialidade. — falaremos sobre isso ainda esta noite. Dou minha palavra de que o que estiver ao meu alcance será feito.

Não lamentava que minha visita estivesse chegando ao fim, uma vez que é desagradável sentir uma pessoa de dentro da casa em que se é hóspede desejar ansiosamente sua partida. O rosto pálido e os olhos hostis da Sra. King se tornavam cada vez mais odiosos para mim. Ela só não era mais abertamente rude devido ao temor que tinha de seu marido. O ciúme dela era tão desvairado que ela me ignorava completamente, a ponto de nunca dirigir-me a palavra. Ela fazia o máximo para que minha estadia em Greylands fosse o mais insuportável possível. Seus modos foram tão ofensivos no último dia que eu certamente teria partido não fosse minha necessária conversa marcada para a noite com meu anfitrião para salvar-me da falência.

Tal conversa ocorreu muito tarde. Meu primo recebera mais telegramas durante o dia que de costume, e ele havia se trancado em seu escritório após o jantar; e só surgiu no ambiente quando a mulher e os empregados foram dormir. Ouvi ele trancando as portas como era de seu costume à noite, e finalmente veio ao meu encontro na sala de bilhar. Sua figura corpulenta estava envolta em um roupão e ele usava um par de pantufas vermelhas sem salto. Acomodando-se numa poltrona, ele preparou um copo de aperitivo, no qual não pude deixar de perceber que o uísque predominava consideravelmente sobre a água.

     — Caramba ! — disse ele, — que noite !

Era verdade. O vento uivava e gritava em volta da casa, e as janelas rangiam e sacudiam como se estivessem a ponto de estourar para dentro. O brilho das lâmpadas amarelas pareciam mais brilhantes e o sabor de nossos charutos mais perfumados pelo contraste.
     — Agora, meu rapaz, — disse meu anfitrião, — temos a casa e a noite para nós. Dê uma ideia de como está sua situação financeira e verei o que poderei fazer para organizá-la. Quero ouvir todos os detalhes.

Me sentindo encorajado, comecei uma longa exposição, citando os comerciantes, credores — do meu senhorio ao meu criado. Tinha feito anotações em minha caderneta de bolso. Fiz, diga-se de passagem, uma exposição bem organizada de minha própria vida mal organizada e de minha situação lamentável. Fiquei deprimido, no entanto, ao perceber que os olhos de meu companheiro eram vagos e sua atenção estava em outro lugar. De quando em quando ele expunha uma observação superficial e inútil, querendo indicar que havia seguido minha linha de raciocínio. Passava mais algum tempo e ele pedia para que eu repetisse algum ponto, mas sempre voltava a ficar desatento em relação às minhas palavras. Por fim ele se levantou e jogou a ponta do charuto na lareira.

    — Ouça, meu garoto — disse ele — desculpe, mas nunca fui bom em visualizar números mentalmente. Coloque tudo por escrito no papel. Vou compreender quando estiver tudo preto no branco.

A proposta era animadora. Prometi fazer o que foi sugerido.

     — Agora é hora de dormirmos. Nossa, o relógio já está badalando uma hora !

O barulho do relógio da sala foi por um instante maior que o som da tempestade. Do lado de fora o vento de tempestade lufava com enorme intensidade.
     — Tenho que ver meu gato antes de ir para a cama. A tempestade deixa ele nervoso. Você me acompanha ?
     — Certamente
     — Então ande devagar e evite falar porque todos estão dormindo.

Nós passamos silenciosamente pela ante-sala adornada com tapetes persas, e fomos até a porta. Estava escuro no corredor de pedra, mas havia um lampião pendurado por um gancho, meu anfitrião o apanhou e o acendeu. Não havia nada visível no recinto, desse modo soube que a fera estava em sua jaula.

     — Entre! — disse meu parente ao abrir a porta.
Um rosnado agressivo nos advertia que o animal realmente estava irritado com o mau tempo. À luz oscilante da lanterna, o vimos. Era uma enorme massa negra atada no canto do covil e lançando uma sombra grosseira sobre a parede caiada. Sua cauda movia-se furiosamente sobre a palha.

     — Pobre Tommy não está no melhor dos ânimos — disse Everard King, segurando o lampião e olhando para ele. — Parece um demônio negro, não é mesmo? Vou dar um pouco de comida para acalmá-lo. Você poderia segurar a lanterna por um momento?

Peguei o lampião da mão dele e ele deu um passo em direção à porta.

     — A dispensa dele está aqui fora. — disse ele. — Aguarde um momento por favor.

Ele saiu e a porta se fechou-se atrás dele com um barulho metálico estridente.
Aquele som duro e assustador fez meu coração disparar. Uma súbita onda de terror me envolveu. Uma percepção vaga de alguma traição monstruosa me deixou com calafrios.
Corri para a porta, mas não havia trinco do lado de dentro.
     — Aqui ! — eu gritei. — Deixe-me sair !
     — Tudo bem ! Não faça escândalo ! — disse meu anfitrião do corredor. — Você tem luz aí.

     — Sim, mas eu não quero ficar trancado aqui sozinho.

     — Você não quer ? Eu ouvi sua risada zombeteira e gutural. — você não ficará sozinho muito tempo.

     — Deixe-me sair ! — repeti em tom irritado. — Quero deixar claro que não admito zombarias desse tipo.
     — Zombaria é o que eu digo! — disse ele com outra risada odiosa. E então subitamente ouvi em meio ao barulho da tempestade, o ranger do guincho e da manivela. A grade estava sendo aberta através da fenda da parede. Meu Deus, ele estava soltando o gato brasileiro !



À luz do lampião, vi a grade deslizando lentamente pela fenda da parede. As barras iam desaparecendo diante de mim. Vi a abertura ficar com a largura de um pé. Dei um grito e agarrei a última barra e a puxei com a força de um louco. Eu era um louco com raiva e horror. Por pouco mais de um minuto consegui deixar a coisa imóvel. Eu sabia que ele estava usando toda a força sobre o cabo de aço, e que a alavancagem certamente me superaria. Lutei centímetro por centímetro, meus pés iam deslizando pelo chão de pedra, e todo o tempo implorei e supliquei para que o monstro desumano me poupasse de tal morte atroz. Invoquei nosso parentesco. Tentei lembrar-lhe que era seu convidado; implorei para saber que mal fizera a ele. Sua única resposta eram os puxões no cabo do guincho movidos pela manivela. A cada sacudida, uma nova barra desaparecia pela fenda. Deixei-me ser arrastado ao longo da jaula até que, finalmente, meus pulsos estavam doloridos e os dedos machucados. Desisti da luta desigual. A grade ressoou quando a soltei e, logo após, ouvi o barulho das pantufas no corredor e a batida da porta distante. Então tudo ficou em silêncio.
Durante um tempo a criatura não se moveu. Ele ficou parado no canto e parou de abanar o rabo. A visão de um homem atrás das barras de seu cativeiro sendo arrastado e gritando em sua frente aparentemente o assombrou. Vi seus grandes olhos me encarando fixamente. Havia deixado cair o lampião no chão quando agarrei as barras, mas ainda assim estava aceso, fiz um movimento para segurá-lo, crendo que sua luz poderia me proteger. Mas no instante que me movi, a fera soltou um rugido profundo e ameaçador. Por um momento me detive e fiquei em meu canto morrendo de medo. O gato (se é que alguém pode chamar uma criatura tão aterrorizante com um nome tão doméstico) não estava mais que três metros de mim. Os olhos brilhavam como dois discos de fósforo na escuridão. Aqueles olhos me aterrorizavam e ao mesmo tempo me fascinavam. Não conseguia tirar meus próprios olhos deles. Em momentos de intensidade tão grande a natureza nos prega peças, e aquelas luzes cintilantes aumentavam e diminuíam em um ritmo de aumento e queda, parecendo faíscas elétricas na escuridão. O recinto era preenchido com aquela iluminação sinistra inconstante. De repente aquelas luzes se apagaram por completo.

A fera fechou os olhos. Eu não sei se pode haver alguma verdade na velha idéia do domínio do olhar humano, ou se o enorme gato estava simplesmente sonolento, mas o fato é que, longe de mostrar qualquer sintoma de me atacar, ele simplesmente cochilou. Ainda assim, em vez de expressar uma intenção agressiva, ele repousou sua grande cabeça negra e lustrosa sobre sobre suas enormes patas dianteiras e parecia querer dormir. Fiquei em pé, temendo me movimentar bruscamente para não atiçar a força maligna dele. Ao menos pude pensar, uma vez que os olhos ferinos estavam fora de mim. Aqui estava eu calado noite adentro com aquele monstro feroz. Meus instintos me diziam que o animal era tão traiçoeiro quanto seu mestre. Como poderia evitá-lo até de manhã? Não havia esperança na porta tampouco nas janelas estreitas e gradeadas. Não havia qualquer abrigo naquela sala nua revestida de rochas. Clamar por ajuda seria um absurdo. Sabia que aquele cativeiro era um anexo e que o corredor que ligava à casa tinha pelo menos trinta metros.  Além disso, com a tempestade trovejante do lado de fora, meus gritos provavelmente não seriam ouvidos. Minha coragem e engenhosidade eram as únicas coisas em que podia confiar.

E então, o desespero me assombrou novamente, olhei para o lampião. A tocha já havia queimado quase até o fim. Mais dez minutos e a iluminação acabaria. Portanto, tinha apenas dez minutos para fazer alguma coisa, pois sentia que se ficasse no escuro com aquele animal medonho, seria incapaz de qualquer ação. Pensar nisso me paralisou. Olhei para todas as partes com olhar de desespero sobre aquela câmara de morte, e fixei meu olhar num ponto que seria senão a salvação, pelo menos um perigo não tão imediato e iminente como o chão aberto. Como mencionei antes, a jaula tinha um teto gradeado da mesma forma que a frente, essa grade horizontal permanecia fixa quando se abria a grade frontal pela fresta da parede. O teto gradeado era constituído de barras com poucos centímetros de intervalo entre as mesmas, eram fixadas por uma estrutura de arame. O espaço entre o teto gradeado e o telhado devia de ser de um pouco mais de meio metro. Se eu pudesse subir lá, me espremendo entre as barras e o teto, ficaria apenas com uma parte de meu corpo vulnerável. Estaria mais seguro que embaixo, minhas costas, meus pés e pernas estavam quase a salvo. Apenas minha face poderia ser atacada. Lá, na verdade não havia proteção, mas ao menos, deveria estar fora da pata do brutamontes quando este começasse a caminhar pelo seu recinto. Ele teria que sair de seu trajeto para me alcançar. Era agora ou nunca, pois a luz estava indo embora, com a luz apagada tal façanha seria impossível. Respirei fundo e pulei, agarrando-me à beira do ferro do teto de grades, com respiração ofegante consegui subir na grade horizontal. Me contorci com dificuldade e finalmente fiquei suspenso de bruços olhando diretamente para os olhos terríveis e a bocarra aberta do gato. Seu mau hálito me atingiu o rosto como se fosse um caldeirão de água com algo podre fervendo.



Aparentemente, no entanto, ele parecia mais curioso que zangado. Com a ondulação elegante de suas longas costas negras, levantou-se, espreguiçou-se e, em seguida, ergueu-se sobre as patas traseiras, com uma das patas dianteiras escorando na parede, deu um tapa sobre a grade horizontal debaixo de mim, as garras afiadas de sua pata rasgaram minhas calças — afinal, estava vestido com traje social elegante para a noite — Surgiu um ferimento no joelho. Não foi um ataque propriamente dito, mas sim um experimento, pois após eu ter gritado de dor ele voltou para o chão novamente, e pulando levemente dentro do seu recinto, ele começou a andar rapidamente pela sala, olhando para cima de vez em quando. Recuei o máximo possível contra a parede. Quanto mais me afastasse da beirada, mais difícil seria para ele me atacar.

Ele parecia mais excitado agora que começara a se mexer e corria veloz e silenciosamente ao redor do cubículo, passando continuamente sob a cama improvisada de ferro sobre a qual eu estava deitado. Era maravilhoso ver uma massa tão grande passando como uma sombra, quase sem o ruído algum. Era mais baixo que a mais suave das almofadas aveludadas. A lâmpada estava queimando — tão fraca que mal podia ver a criatura. E então, com um último clarão veio o último lampejo, o lampião apagou-se completamente. Eu estava sozinho com aquele gato no escuro!

Quando se sabe que foi feito tudo o que é possível para vencer uma dificuldade parece ajudar no enfrentamento do perigo. Não há nada a fazer a não ser esperar silenciosamente pelo resultado. Neste caso, não havia chance de segurança em lugar algum exceto o lugar exato onde eu estava. Me estendi e repousei em silêncio respirando o mínimo possível, na esperança de a fera esquecer de minha presença no caso de eu não fazer nada para lembrá-lo de que eu estava lá. Calculei por alto que já deviam ser umas duas horas. Às quatro o dia amanheceria. Eu não tinha mais nada a fazer a não ser esperar aquelas duas terríveis horas para ver a luz do dia.

Do lado de fora a tempestade ainda fazia barulho, e a chuva não parava de cair continuamente contra as pequenas janelas. Do lado de dentro o ar insalubre e fedido era dominante. Eu não podia nem ver tampouco ouvir o gato. Tentei pensar sobre outras coisas, mas a única coisa que desviava meu pensamento daquela terrível situação era a vilania de meu primo, sua hipocrisia ímpar e sua maldade absurda contra mim. Por detrás daquele rosto alegre, escondia-se o espírito de um assassino medieval. A medida que eu pensava nisso via com mais clareza como as coisas haviam sido planejadas. Ele tinha aparentemente ido para a cama dormir como fizeram as outras pessoas da casa. Sem dúvida ele teria testemunhas para provar seu álibi. A história dele era muito simples: ele diria que havia me deixado terminar meu charuto na sala de bilhar. Eu tinha ido sozinho por minha conta e risco ver o gato uma última vez, e que tinha entrado no recinto sem perceber que a porta da jaula estava aberta e que dessa maneira um acidente trágico ocorreu, e que fatalmente eu havia sido devorado pelo gato. Como tal crime poderia ser imputado a ele? Talvez ele seria suspeito, mas não haveria em hipótese alguma prova conclusiva.

Como aquelas duas horas apavorantes demoraram a passar! Durante a espera ouvi um som baixo e áspero, imaginei ser a criatura lambendo sua própria pele. Diversas vezes aqueles olhos esverdeados brilharam em minha direção através da escuridão, mas nunca um olhar fixo, e minhas esperanças ficaram mais fortes em que minha presença tinha sido esquecida ou ignorada. Por fim, a primeira luz do amanhecer atravessou as janelas. A princípio vi dois quadrados cinzentos, depois a coloração cinzenta foi ficando branca; em seguida distingui novamente meu companheiro medonho. E para piorar as coisas, ele também podia me ver !

Ficou evidente para mim que seu humor estava muito mais agressivo e perigoso do que quando o vi pela última vez. O frio da manhã tinha irritado ele, e além do mais ele estava com fome. Com um rosnado contínuo ele caminhava de um lado para o outro do cubículo. Ele se pôs a caminhar na parede oposta ao meu refúgio, seus bigodes estavam arrepiados ferozmente e sua cauda balançava e chicoteava. Quando ele contornava os cantos seus olhos selvagens olhavam para cima em minha direção com uma ameaça mortal. Soube então que ele queria me matar. E mesmo assim não pude deixar de admirar a graciosidade sinuosa dessa criatura demoníaca, seus movimentos longos e flexíveis, o brilho de seus pelos, a palpitação de sua língua vermelha pendurada em seu focinho preto. Ele rosnava o tempo todo cada vez mais alto. Estava esperando seu ataque a qualquer minuto.
Que hora miserável para morrer — tão frio, tão desconfortável, tremendo em minhas roupas leves sobre aquela grelha de tormento sobre a qual estava deitado.  Me esforcei para me reanimar, para elevar minha alma rumo a superação, e ao mesmo tempo com a lucidez de um homem que se vê perdido. Olhei para todas as partes buscando algum meio possível de salvação. Uma coisa estava clara para mim. Se a porta da jaula pudesse retroceder, eu poderia encontrar refúgio atrás dela. Seria possível eu puxar a grade da jaula de volta? Me movi com muito cuidado com medo de atrair a criatura em minha direção. Devagar, muito lentamente coloquei minha mão sobre a porta aberta. A última barra estava dentro da fresta da parede. Para minha surpresa cedeu facilmente na minha direção. Naturalmente minha dificuldade estava em minha falta de apoio, uma vez que encontrava-me deitado. Eu puxei novamente e uns oito centímetros foram foram movidos. Aparentemente funcionava sobre rodas. Puxei novamente … E então o gato pulou !

Foi tão rápido, tão repentino, que realmente não o vi. Escutei apenas um rugido selvagem, e num segundo momento vi olhos amarelos brilhantes, a cabeça negra achatada com sua língua vermelha e dentes brancos, ele estava ao alcance da minha mão, o choque sacudiu o teto gradeado no qual eu estava deitado. Até que eu pensei (se é que consegue-se pensar em qualquer coisa em tal momento) que o teto gradeado iria desabar. O gato chegou tão perto, a cabeça e as patas tão próximas, as patas traseiras arranharam a borda do da estrutura de ferro. Pude ouvir as garras de trás raspando enquanto as dianteiras se agarravam às grades horizontais, e o hálito dele me deixava nauseado. Mas seu salto havia sido mal calculado. Ele não conseguiu manter a posição. Ele balançou para trás e caiu pesadamente sobre o chão. Com um rosnado ele me encarou e se encolheu para saltar uma segunda vez.
Eu sabia que meu destino seria decidido nos próximos momentos. A criatura tinha aprendido por experiência. Ele não iria cometer erro de cálculo novamente. Tinha que agir prontamente, sem medo, caso quisesse ter uma chance de viver. Em um instante elaborei um plano. Tirei meu paletó e o joguei sobre a cabeça da fera. No mesmo momento desci para o chão, agarrei a porta com grades e a puxei com toda minha força para dentro para fechar a  porta da jaula.



A porta fechou mais facilmente que eu poderia esperar. Cruzei o recinto arrastando a porta comigo, mas a pressa extrema ao realizar esse movimento me fez ficar do lado de fora da jaula. Se eu estivesse do lado oposto, talvez tivesse saído sem nenhum arranhão. Me obriguei a parar por um instante para passar através da abertura que eu tinha deixado. Aquele momento foi suficiente para dar tempo de a criatura se livrar do casaco com o qual eu tinha temporariamente o cegado e pular em minha direção. Me esgueirei pela abertura e puxei as porta pelo trilho atrás de mim, mas ele agarrou minha perna antes que eu pudesse retirá-la completamente.  Um golpe de sua enorme pata rasgou minha panturrilha da mesma maneira que uma lâmina de serraria corta uma lasca de madeira. No momento seguinte, sangrando e quase desmaiado, me encontrei deitado sobre a cama de palha imunda e protegido por barras amigas enquanto a criatura investia furiosamente contra as mesmas.
Demasiadamente ferido para me movimentar, fraco demais para sentir medo, só me restava deitar mais morto do que vivo e observar meu inimigo. Ele pressionou seu peito preto contra as barras e tentou me pegar com as patas dianteiras como os gatos domésticos fazem em frente à uma ratoeira. Ele arranhava minhas roupas mas não conseguia me tocar. Tinha ouvido falar do curioso efeito entorpecedor das feridas provocadas pelos grandes carnívoros; eu estava experimentando na prática essa teoria; uma vez que tinha perdido todo meu senso de personalidade e não estava interessado no sucesso ou fracasso do gato ... Era como se fosse um jogo que estava assistindo. E então gradualmente minha mente me conduziu para sonhos estranhos, em minha visão sempre  aparecia aquela face negra com a língua vermelha. As visões iam e vinham. Havia me perdido num delírio de nirvana, o abençoado alívio dos que sofrem um castigo extremo.

Ao relembrar os acontecimentos posteriormente, concluo que devo ter ficado desmaiado por cerca de duas horas. O que me fez acordar de minha inconsciência foi o barulho metálico estridente da tranca da porta externa pela qual minha aventura teve início. Era o barulho do disparo da mola da fechadura. Antes de acordar o suficiente para ter uma percepção clara das coisas, vi o rosto redondo e benevolente de meu primo olhando pela porta aberta. O que ele viu certamente o agradou. O gato estava agachado no chão. Enquanto eu estava estendido sobre as minhas costas com a camisa em farrapos, calças rasgadas em tiras e uma grande poça de sangue em volta de mim. Posso ver seu rosto espantado agora, pois estava bem iluminado com a luz do sol da manhã. Ele olhou para mim e olhou novamente. Então ele fechou a porta atrás de si e avançou para a jaula para verificar se eu realmente tinha morrido.

Não posso dizer exatamente o que ocorreu. Não estava totalmente lúcido a ponto de testemunhar com exatidão. O que tenho certeza é que ele estava virando as costas deixando de olhar para mim para encarar o animal.

     — Tommy, meu filho ! — Gritou ele. — Meu bom e velho Tommy !
Em seguida ele aproximou-se das barras da porta da jaula, ainda de costas para mim.
     — Quieto, sua fera estúpida ! — esbravejou meu primo — Você não conhece seu dono ?

Subitamente veio a lembrança em meu cérebro estonteado das palavras que meu primo tinha dito sobre que quando o gato provasse o gosto de sangue faria ele se voltar contra um amigo. Meu sangue tinha despertado tal instinto assassino, mas era ele quem estava lá para pagar o preço.
     — Saia daqui ! — ele gritou. — Saia daqui seu demônio ! Baldwin ! Baldwin ! Ah, meu Deus !



E então eu ouvi ele cair e se levantar novamente, com um som semelhante ao rasgar de um tecido. Seus gritos foram ficando gradativamente mais fracos até que foram abafados completamente pelo enorme rosnado de seu agressor. E depois de eu achar que ele tinha morrido, eu vi, como num pesadelo, uma figura cega, esfarrapada e encharcada de sangue correndo pelo recinto — essa foi minha última visão antes de eu desmaiar mais uma vez.
Levei muitos meses em minha recuperação — na verdade não posso dizer que me recuperei de fato — pois até o final dos meus dias terei de carregar uma bengala, como lembrança da minha noite com o gato brasileiro, Baldwin, o tratador e os outros criados não sabiam o que tinha acontecido quando, atraídos pelos gritos de morte de seu patrão, me encontraram atrás das grades e os restos mortais de meu primo — ou o que eles descobriram depois serem seus restos — sob as garras da criatura que ele havia criado. Eles o prenderam com ferros quentes, e depois atiraram nele para que pudessem me libertar. Fui levado para meu quarto, e lá, sob o teto de meu quase assassino, estive à beira da morte por diversas semanas. Eles tinham enviado um cirurgião de Clipton e uma enfermeira de Londres, e, em um mês eu estava pronto para ser carregado até a estação de trem, e assim retornei mais uma vez para Grosvenor Mansions.
Eu tenho uma lembrança do tempo em que estava doente, que poderia ter sido parte do panorama em constante mudança de um cérebro delirante se não tivesse sido definitivamente fixada em minha memória. Certa noite, quando a enfermeira estava ausente, entrou pela porta de meu quarto uma mulher alta, vestida de luto. Ela se aproximou de mim e, ao inclinar seu rosto amarelado, vi pelo pela baixa iluminação da luz do abajur que era a mulher brasileira com quem meu primo casara. Ela olhou atentamente para meu rosto, e sua expressão foi muito mais amável do que aquela que eu tinha conhecido.

     

     — Você está consciente ? — ela perguntou.
Eu acenei que sim com a cabeça com dificuldade. — uma vez que estava ainda muito doente.
     — Bem; eu só queria dizer que você tem a si mesmo para culpar. Eu fiz tudo o que pude por você, não fiz ? Desde o começo tentei te expulsar de casa. Por todos os meios, menos trair meu marido, tentei salvá-lo dele. Eu sabia que ele tinha uma razão para te trazer aqui. Eu sabia que ele nunca deixaria você sair novamente. Ninguém o conhecia como eu conhecia, eu que sofrera com ele tantas vezes. Eu não me atrevi a te contar tudo isso. Ele teria me matado. Mas eu fiz o melhor que pude para te salvar. Do jeito que as coisas acabararam, você veio a ser o melhor amigo que eu já tive. Você me libertou, e eu imaginei que nada além da morte me traria liberdade. Lamento se você está ferido, mas não posso me reprovar. Eu lhe disse que você era um tolo — e você acabou sendo de fato um tolo. Depois ela saiu do quarto, aquela mulher amarga e singular, e eu nunca mais voltei a vê-la novamente. Com o que restava da propriedade de seu marido, ela voltou para a sua terra natal. Ouvi dizer que ela virou freira em Pernambuco.

Após algum tempo de meu regresso a Londres, os médicos permitiram eu cuidar de meus próprios negócios. Não era uma permissão muito bem-vinda, pois eu previ que aquele era o sinal para uma avalanche de credores. No entanto, quem primeiro apareceu foi meu advogado Summers.
     — Me alegra muitíssimo que vossa senhoria tenha melhorado. Há muito que espero te oferecer meus parabéns.
     — Que brincadeira é essa, Summers? Não é uma boa hora para piadas.
     — Falo sério — respondeu ele. — Faz seis semanas que o Lorde Southerton faleceu. Não informamos você antes com receio de atrapalhar sua recuperação.
Lorde Southerton ! Um dos homens maiores magnatas da Inglaterra ! Eu não podia crer em meus ouvidos. E então subitamente pensei no tempo que tinha passado, e de como coincidia com meus ferimentos.
     — Então Lorde Southerton deve ter morrido quase ao mesmo tempo que eu fui ferido ?
     — A morte dele ocorreu naquele mesmo dia. — Summers olhou sério para mim e falou — e eu estou convencido — uma vez que ele é um sujeito muito astuto — que ele tinha suposto a verdadeira natureza do acidente. Ele fez uma pausa, como esperando uma confidência minha, mas eu não sei o que eu lucraria expondo tal escândalo familiar.
     — Sim, é uma coincidência muito curiosa. — ele continuou, com o mesmo olhar de quem sabia. — Naturalmente você sabe que seu primo Everard King é o próximo herdeiro na linha de sucessão.
Agora, se tivesse sido você no lugar dele quem tivesse sido rasgado em pedaços por este tigre, ou seja lá o que for, então certamente era seu primo que tinha herdado a fortuna de Lorde Southerton no presente momento.
     — Sem dúvida alguma. — disse eu.
     — Soube casualmente que o camareiro de Lorde Southerton estava sendo pago por Everard King para informa-lhe sobre a saúde de seu patrão. O camareiro enviava telegramas com intervalo de poucas horas para deixar Everard King a par das últimas novidades de saúde de seu tio. Não é estranho ele querer estar tão bem informado uma vez que ele não é o herdeiro direto ?
     — Muito estranho. — disse eu. — E agora, Summers, traga-me as contas e um talão de cheques novo, vamos começar a colocar as coisas em ordem.






O Contexto histórico da última entrevista de Hannah Arendt em 1973

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